Tarde solarenga, propícia à janela escancarada e ao motor em movimento. O essencial estava no carro: garrafas de água, rádio ligado, tabaco e, claro, o cachecol apertado no vidro traseiro para anunciar ao que ia.
Até à portagem, pouco sinal de vida benfiquista. Uma buzina aqui, um puto no carro à frente a olhar para trás e a dizer-me adeus, alguns olhares cúmplices, tímidos, e pouco mais. Estava calma a tarde das meias-finais da Liga Europa.
Passados os primeiros quilómetros depois da portagem, então sim, a romaria parecia querer aparecer e vi de tudo: desde os clássicos cachecóis no vidro às bandeiras no vidro de trás. Mas o vencedor da A1 foi um gajo que levava o carro todo vermelho, coberto de bandeiras e cachecóis por todo lado (até nas jantes!) e uma bandeira gigante de 3 metros enfiada entre o banco do pendura e a porta. Ultrapassei-o, buzinei, disse-lhe adeus e... nada. Com uma cara enfiada na estrada, o braço esquerdo tapando o vidro, este benfiquista, apesar de todo o festival circense da viatura, ia deprimido. Não sou dado a superstições mas aquela expressão de enfado alertou-me para uma noite de mágoa.
Cabelos ao vento, sol em barda, música boa, buzinadelas cúmplices depois, páro na estação de serviço de Pombal para um natural soltar das águas e uma cerveja fresquinha que a sobriedade começava a parecer coisa absurda.
Encontro o nosso deprimido sentado em frente a um pão com chouriço e, claro, uma mini Sagres. Não resisto e comento-lhe a festividade benfiquista que transporta no carro. Meio resmungão, lá me responde que os filhos o ajudaram na decoração. "Está bonito", digo, e avanço aquele número conhecido: "hoje é para ganhar!", ao que ele me responde: "não acredito". Segundo sinal de preocupação, mesmo não sendo supersticioso. "Então o amigo vem todo armadilhado até Braga e não acredita?", digo eu numa última esperança de que o destino nos moldasse a tragédia. "Foi uma promessa que fiz no jogo na Holanda, mas acredito pouco neste Benfica". Respondi-lhe qualquer coisa automática, "não diga isso!" ou "vai ver que tem uma surpresa" e aproveitei para fugir daquele mau karma enquanto podia.
À saída da área de serviço, um gajo sentado na relva a pedir boleia, com um atrelado de coisas, entre a guitarra e duas malas cheias de não se sabe bem o quê. Páro o carro, ele chega-se perto, analisa-me e acha que eu sou merecedor de lhe dar boleia. Os carros atrás à espera e ele a encher o banco de trás com tralha de 5 anos de vida nómada.
Era húngaro. Nome? Miklós (karma, karma, sai de mim). Para onde, Miklós? "Porto" (Karma?). Deixo-te em Gaia, Miklós, que o trânsito no Porto é uma afronta à humanidade e eu tenho um jogo para ver mais a norte. De Pombal até deixar o húngaro, esqueci o futebol.
Falámos de assuntos menores: da vida, da sociedade, de como viver nela, com quem viver nela, de quem fugir dela, e outros assuntos menores como a agricultura biológica, o estado do planeta, religiões alternativas e a possível vida em Marte. Foi bom. Serviu para esquecer o essencial e as superstições negativas que vinham vindo atreladas ao meu carro desde que saí de casa.
Em Gaia despedi-me do Miklós, dei-lhe umas garrafas de água, que ele recebeu por simpatia embora prefira, palavras dele, a água dos canos. Despediu-se de mim com um "os portugueses são mais humanos que os espanhóis" e deixou-me no carro um colar. Adeus, Miklós, encontramo-nos na Índia.
Ainda esquecido ao que ia, rapidamente o destino mo lembrou: à saída da área de serviço estava o nosso companheiro benfiquista encostado à berma a retirar toda a indumentária do carro. Compreende-se. Como o mundo anda, é melhor preservar as viaturas às pedras, aos escarros e aos insultos. O benfiquista ia deprimido mas não ia seguramente desavisado. Fiz-lhe um aceno, ele não respondeu e eu segui até Braga sem passar pelo Estádio do Dragão não fosse o destino dar-me mais notas musicais da ópera bufa que iria ver de seguida.
Chegado a Braga, parei o carro ao pé da estação de comboios (onde um amigo me vinha encontrar) e fui beber médias para o pé do Café Benfica, que é um café onde as pessoas odeiam o Benfica - na segunda parte, vão perceber o fenómeno.
O dono era um antigo sportinguista, agora do Braga, às vezes do Porto e nunca do Benfica. E eu fiquei sem saber se o Miklós tinha conseguido encontrar a comunidade de ocupas lá para os arrabaldes do Douro.
Estou a gostar, sim senhor!
ResponderEliminarTb...
ResponderEliminarrealização de Fellini?
:)
Escolheria o Fellini para a Parte 2 - seria o realizador perfeito de um fenómeno tão absurdo como o vivenciado por este que vos fala e escreve.
ResponderEliminarEditor, conheces a Tapada de Mafra? Estive lá este fim-de-semana num casório. Não conhecia o sítio e fiquei curioso em saber mais sobre ele. Sei que era do nosso caçador D. Carlos. E é só. Se tiveres mais informação, atira-a para aqui que será muito bem recebida.
Muito bom, parece um daqueles livros que lemos com redobrado prazer porque já sabemos que acabam mal.
ResponderEliminarO pouco que sei acerca da Tapada é que foi criada por D. Joao V (o do ouro..ehehehehe) para deleite dele e da sua nobreza nas caçadas e que foi seguindo até D.Carlos que era boa espingarda.
ResponderEliminarEstive lá uma unica vez à anos nas rodagens de "O Processo dos Távoras" e mais não sei a não ser que é administrada pelos militares.
Abraço
@Ricardo...
ResponderEliminarhttp://www.tapadademafra.pt/index.php?mod=articles&action=viewArticle&article_id=83&category_id=47