segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O debate quinzenal

A tarde estava triste. Não chorava mas envolvia-nos com aquele bafo frio de nuvens densas, a que é costume chamar-se de "um dia de merda". As pessoas, no entanto, pareciam não estar preocupadas. Afinal, o dia era de Debate quinzenal!

Logo muito cedo começaram a chegar à Praça de São Bento os costumeiros vendedores de cachecóis com as famosas imagens da Assembleia e as bandeiras a vermelho, com a cara do melhor jogador da casa: José Sócrates, exímio driblador de questões incómodas e maestro na arte de, no semi-círculo de discussão, falar mais no que as equipas adversárias não fizeram no passado do que debater os assuntos da sua própria equipa - um génio com a gravata ao colarinho.

Confesso que estava nervoso. Era a minha primeira experiência na "Casa da Democracia" e tinha sérias dúvidas sobre as prestações de António Pereira Coelho e de Ribeiro Cristóvão. Sobre o primeiro, a minha inquietação maior residia em saber se seria capaz de servir de tampão às transições económicas a que, muito provavelmente, estaria sujeito por parte da bancada adversária; já sobre o segundo, questionava-me se seria homem capaz de funcionar, em apoio, com profundidade na hora de assistir o nosso grande goleador.

Para acabar com o nervosismo, eu e uns amigos, empolgados pela multidão eufórica e por uma sede indesmentível, estacionámos ao pé de uma barraca de cerveja e ali ficámos, em alegre cavaqueira, até perto do início da contenda. Estava um ambiente algo conturbado: viam-se, ao longe, os primeiros adeptos socialistas e, não fosse a imediata intervenção da autoridade, teríamos saído dali todos à batatada - continuo a dizer que as Juventudes em nada dignificam a Política, são bandos de delinquentes sempre em busca de motivos para a violência. É certo que apoiam, que gritam muito, que têm barba e que têm megafones, é certo também que, na arte da demagogia e ignorância mais suja e mais baixa, eles são peritos - afinal, estão bem instruídos desde muito novos, logo que entram nas faculdades. Por mim, deixava a política entregue aos adeptos, apenas e tão-somente aos adeptos apaixonados pelas causas; os que se sentam nas tribunas do Parlamento, não gritam e são civilizados.
 
Quando faltava meia-hora para o debate, acabámos a cerveja de um trago e dirigimo-nos para a entrada. Como tínhamos bilhete, estávamos tranquilos e não havia motivos para preocupações, certo? Errado. Hoje em dia, já não se pode ir à política sem que sejamos apalpados por todos os lados e olhados com descrença por energúmenos de coletes fluorescentes, como se fôssemos alguns criminosos que decidiram ir ver política, sem outro intuito que a violência gratuita. Senti-me indignado! Para além da normal apalpadela, ainda me retiraram dos bolsos um isqueiro que o PSD de Abrantes me tinha dado há mais de 10 anos, o mp3 que tinha uma música cubana sobre o "Comandante" e a fita no cabelo por revelar - nas palavras do energúmeno e cito - "razões suficientes para uma batalha campal, devido à cor alaranjada". Bom, lá entrei sem isqueiro, sem mp3 e com o cabelo desgrenhado, na esperança, porém, de que o debate valesse a pena e pudesse esquecer mais uma atribulada entrada no semi-círculo do poder.

Chegados, o mesmo de sempre: alguém estava sentado na minha cadeira. Blá, blá, blá, "o seu lugar é na tribuna em cima do Luís Fazenda", "não é nada, é perto do Portas", "é sim, veja, A 22, lugar 18, tribuna bloquista". Lá saiu o barbudo, com cara de quem não comia, não dormia e não f... ingia há uns bons meses e eu, finalmente, pude encostar-me e esperar o espectáculo. Meus amigos, e que deprimente foi! Sócrates, na zona central, felizmente não fez um único passe a rasgar a bancada da direita; sempre em movimentos circulares, atirava para trás, grunhia para a frente, voltava a meter a bola no passado, chegava-se à entrada do semi-círculo direito mas logo recuava e voltava a empatar o jogo. Do lado da nossa equipa, um jogo de cintura assinalável; muita táctica, muito empolgamento, muito sorriso irónico, mas política... nem vê-la. Parecia que nenhuma das duas equipas queria ganhar. Absurdo!

O mais interessante da contenda foi observar como anda o "Sistema" por estes dias em Portugal. Meus amigos, a arbitragem foi escandalosa, do princípio ao fim! Jaime Gama, que já me estava atravessado desde aquela ida a um mercado, em que não beijou nenhuma das peixeiras, foi igual a si mesmo: gritante desigualdade de critérios, autoritário em demasia com os nossos e caseirinho como sempre. Há um lance no debate que não deixa dúvidas a ninguém: quando Pedro Santana Lopes se preparava para rematar contra a baliza de Manuel Pinho, atirando-lhe com um remate em "os portugueses não têm dinheiro para comer", aparece Pedro Silva Pereira, já na primeira bancada à entrada para o átrio, que ceifa o nosso líder parlamentar com um "não diga mentiras, pá!". Punições? Nada! Nem um "Ministro da Presidência, estamos na Assembleia da República", quanto mais um "Pedro Silva Pereira, faça o favor de abandonar o Parlamento e ir tomar banho mais cedo". Escandaloso!

Mais tarde no debate, já perto do fim, outro lance em que Jaime Gama, arguido no processo "Apito socrático", mostrou toda a sua tendência para a equipa da casa: estava Alberto Martins a gastar tempo, tecendo loas infinitas ao goleador José Sócrates, quando do seu lado direito um seu companheiro de bancada se vira e diz: "muito bem, muito bem", aplaudindo, meus amigos, aplaudindo! O que fez Jaime Gama? Fingiu não ouvir nada e foi complacente: "faça o favor de terminar, deputado Alberto Martins". Se isto não é um roubo de Parlamento, então não sei o que é! Muito triste. Assim não vale a pena vir à política. Se é para isto que sofremos e gastamos dinheiro, quando podíamos ter ficado em casa, confortavelmente a ver o debate pela televisão, então não vale a pena.

Quando acabou o debate, ficámos algum tempo a olhar no vazio - com aquela cara anestesiada de quem acaba de ver um debate de merda e não ganhou - e à espera que os adeptos da casa saíssem. Para meu espanto vejo, no interior do semi-círculo, Sócrates e Santos Silva numa galhofeira pegada sacarem de um cigarro e começarem a fumar em pleno terreno de debate. Eu, que tinha ficado sem isqueiro e farto de andar a fumar ao frio, sempre que me decido a sair de casa e quero - veja-se a heresia - ir comer fora, questionei o segurança que, com um ar sábio e algo arrogante, me respondeu: "Devem ter fretado a Assembleia". E eu tudo bem.


[Texto recuperado de um outro blogue onde escrevo - "Um Homem não Chora"-, de 30 de Maio de 2008, que infelizmente mantém toda a actualidade]

1 comentário:

  1. Um grande abraço, Ricardo.
    Esse teu blogue - Um homem não chora - é qualquer coisa de muito especial, começando logo pelo seu título. Recordo algo que por lá li há coisa de 1 ano sobre um aniversário.

    Um homem não chora é igual a: o Ricardo sem a sua faceta do clube de Benfica. Quando assim é, só podemos agradecer, e sentirmo-nos honrados pela sua presença. Falo por mim, claro.

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