Para qualquer adepto de futebol há poucas coisas mais irritantes do que o delay.
Talvez aquele sócio do Piso 1 (fui lá uma vez e não volto, já disse) que, atrás de nós, enquanto soltamos o corpo e a voz para a acústica do Estádio, nos ordena que nos sentemos: "está a sentar, isto não é o peão", ao que normalmente tenho por tradição responder: "está a levantar, isto não é a ópera", mas só de vez em quando, não vá a maralha ter de arrefecer os rabinhos e aquecer as raivas contidas, atirando-me, qual Lyonce Viiktória, em voo rasante pelas alturas do anfiteatro. Com sorte, poderia imitar a já antiga Águia do Barnabé que, entre bezanas de tarântulas, ratos e toupeiras, às vezes acabava a fazer compras na Zara do Colombo.
Talvez o assobiador compulsivo, sempre tão empenhado em escolher criteriosamente os momentos do jogo em que se levanta para fazer barulho: ou quando chama o árbitro de "minha querida papoila" ou quando carrega todas as frustrações da sua vida num só instante e as traduz num gesto seco - três dedinhos em riste e dois em curva para a solidão da língua - em direcção aos Emersons desta vida e acaba com um sempre digno: "joga à bola, palhaço", não sabendo ser ele o verdadeiro protagonista do circo idiota em que voluntariamente se inscreveu. Apetece sempre qualquer coisa, nestes momentos: um "vai assobiar para o caralho, cabrão!" ou então, numa perspectiva mais preocupada com a higiene do cefalópode: "coças o cu e metes na boca, és pouco porco, és!", mas atentemos que é o Benfica que estamos a ver, é escusado tornarmos o Estádio numa caótica guerra de aldeia de gauleses, entre peixes podres, menires, javalis e um bardo atado a uma árvore. Há-de chegar o dia em que soltemos pequenas lanças de veneno no calor dos cachecóis.
Mas o delay, essa finta dos deuses das ondas de som, tem de estar presente em qualquer campeonato minimamente credível que premeie as maiores irritações para um adepto. O delay é cobarde, porque não aparece às pessoas para ser sovado; esconde-se no ar, esvai-se no tempo, ri-se de nós em silêncio e depois em som, esvoaça por cima, aparece por dentro, cai num fosso vazio, sobrevoa-nos pelo céu. O delay goza-nos, enquanto tragicamente nos relembra a nossa condição humana. Adora mostrar-nos do que é capaz, adora saber-nos impotentes para o controlar. O delay é a prova intangível de que há maldade no mundo.
Quantas vezes vimos jogos em tascas, esperando aquele golo salvador ou temendo o golo da desgraça, enquanto um velho de transístor no ouvido, de pé, mãos acenando ao ar como que antecipando a euforia ou a depressão colectiva, arrisca uma umbilical relação com o divino delay e se faz deus, anunciando, com 3,456 segundos de diferença, o goooooooooooooooooooooooolo? Quantas, delay do céu, quantas? E nós ali, olhando esperançados o ecrã ou morrendo por dentro no temor da tristeza, feitos bonecos humanos nos braços de forças incontroláveis, apenas iscos da existência. A sova que normalmente arreamos nos velhos depois de nos privarem do melhor momento da vida não chega, não é suficiente, não traz paz ao que, tão malevolamente, nos retiraram.
Depois há o caso do delay do próprio estádio, sentimento ainda mais desesperante porque impossível de resolver com uns sopapos na cara do betão das bancadas. Em Santa Maria da Feira foi assim: um prédio à espera de novos condóminos no telhado e, à entrada, um café a dar o jogo. 40 gajos do lado de fora, vidro pelo meio e o bruááá dos adeptos ali tão perto. Sabíamos que não ia dar golo, sabíamos da impossibilidade da jogada perigosa, do remate no poste. Bastava ouvir o quase silêncio demoníaco do relvado ali tão perto. Para quê olhar a televisão, se o delay gozava-nos com a ausência de golo? De que valia encher o peito de esperança naquele lance pela ala se o estádio não tinha ainda levantado o coro da jogada decisiva?
Naturalmente, fugimos. Uns para cima, outros para o lado, outros para dentro. Todos na esperança de acabarmos, de uma vez por todas, com o delay. E, mesmo assim, enquanto adeptos pediam preços populares, outros discutiam calorosamente em rulotes e cafés o benfiquismo acelerado, tenho a certeza de que, dentro do estádio, o delay vivia tranquilamente nos ouvidos de um velho que achava que podia gritar golo antes de ele acontecer.
Muito bom.
ResponderEliminarO delay é a filha da putice no futebol.
Na Luz não há Djelay, há Djaló!
http://simaoescuta.blogspot.com
Aqui ao lado diz "Estou bêbado e tenho de escrever isto".
ResponderEliminarNeste post também ou...
Bebe outra!
POC, o Djaló também tem muitos delays. Não vem mal ao mundo. É assim e pronto.
ResponderEliminarObrigado, Lawrence, pelo contributo. És um enorme benfiquista.
É coisa de resistentes, durante muitos anos, o povo só (ou)via pela rádio ...
ResponderEliminarDepois, os outros, aqueles que queriam ouvir os outros resultados pois os jogos eram à mesma hora (imagine-se este conceito de jogos à mesma hora sem ser na última, ou duas ou três últimas jorrnadas como até há pouco tempo acontecia) ...
Hoje em dia, tendo em conta a merda que pulula nas tvs, às vezes dá vontade de ouvir a rádio, mas o delay, irrita-me ver o que já sei e pior que isso, irrita-me que alguém saiba e diga poças, raios, cepos ou pior ainda golo ou mesmo gooooloooooooooo ...
Mas quando quem o faz tem já muitos anos de benfiquismo, não levo a mal, apenas vou para outro sítio ver a bola e esperar que o génio do Aimar me delicie em directo e que o Cardozo meta lá mais um ou dois dentro, como a malta gosta ...
Por momentos deu vontade de gritar para dentro estádio: "Calem-se, caralho! Não vêem que estamos a ver esta merda com delay? Tenham respeito!"
ResponderEliminarBcool, não levo a mal o gajo que está a ouvir e não dá sinal de nada. Agora o filho da puta que quer saber mais do que os outros e faz gala em anunciar ao mundo que vai haver um golo dentro de 4 segundos, puta que o pariu. Por mim, morriam todos.
ResponderEliminarÉter, em Santa Maria da Feira houve, de facto, muito desrespeito por parte de quem via o jogo. Vai uma pessoa fazer estes quilómetros todos para ver o jogo fora do estádio e os gajos lá dentro não sabem entender isto? Uma vergonha.
Acarditava no elogio se Benfiquista tivesse sido escrito com B grande.
ResponderEliminarMas como por aqui a fina ironia reina...