Como eu não sou religioso, tenho tempo para pensar. Se eu andasse a planear roubar a caixa de esmolas da Igreja, a inventariar a vida dos outros, a estudar exaustivamente os livros que dizem que Deus existe porque o filho dele escreveu um livro, em rezas ou idas à missa, restar-me-ia pouquíssimo tempo para o resto. E o resto é absurdamente desgastante. Cansa muito pensar, consomem-se dias nisto e não se chega a conclusão nenhuma. Se ao menos Deus existisse para desinventar os que nele não crêem. Se ao menos.
Como tudo seria mais fácil se eu acreditasse que, morrendo, viveria e não esta estúpida ideia que não me sai da cabeça de que, morrendo, morro. Uma luz que me chegasse de fininho, me iluminasse e me criasse crente. Não precisava de ser cinematográfico; um toque no ombro, um pentear de cabelos, uma mão sobre a minha, dois cubos de gelo sobre a mesa, qualquer coisa que me ensinasse o dom da fé sem questões. Mas mantenho teimosamente esta luta comigo próprio, este absurdo necessitar de provas, de coisas tangíveis e claras. Se ao menos Deus existisse e me chamasse pelo nome. Às vezes estou na cozinha a olhar o horizonte nublado, requisitando absolvições divinas e oiço uma voz. "Ricardo, Ricardo" e não sei se é do gin se do adiantado do mundo mas entra-se-me uma esperança de eterno que logo é miseravelmente destruída pela realidade: afinal não é Deus nem Nosso Senhor nem sequer a Fátima que gostava de comer azeitonas em cima de uma árvore. É a vizinha que traz o quotidiano: "podes passar-me as cuecas do meu filho que caíram no teu estendal?". Se ao menos Deus fosse uma dona de casa. Se ao menos.
No outro dia, visitaram-me. Abri a porta e uma senhora muito bem composta com o seu deficiente mental de estimação atrás dela, de óculos muito grandes, vítreos e profundos, umas mãos pequenas e uns olhos que me perscrutavam as pontas dos pés. A senhora de cabelo apanhado, casaquinho de malha, ombros caídos sob a presença do etéreo e uns livrinhos de que, tem a certeza, eu vou gostar muito de ler. Não são bem livros, antes folhetos, páginas a azul e branco com propaganda jeová. "Já leu as crónicas do Dr. Abraham Milzenovky Tratcher Viktus?", "Com imensa pena minha, não li", "Pois é, as pessoas hoje em dia dedicam-se a outras coisas", "De facto", "O que tem a dizer sobre a religião?", "Talvez caia melhor com chourição", "É crente?", "Apenas no que vejo e no Benfica", "Vê este pobre coitado aqui perto de mim?", "Se os olhos não me enganam...", "Foi salvo por Deus", "Tem provas?", "Não são necessárias", "Nem para ele próprio?", "O rapazinho não tem capacidade para isso", "Porquê?", "Tem uma deficiência mental profunda", "Compreendo", "Já leu a Bíblia?", "Aos soluços", "E o que retirou dos ensinamentos?", "Pouca coisa, quase nada, um adultério aqui, uma traição acolá, uns crimes de fraco teor artístico, pão, vinho e pouco mais", "Não se brinca com coisas sérias.", "Precisamente o que sinto", "Então sabe que Deus existe e nos ama a todos?", "Não sei, nunca o conheci barba com barba", "Tem dúvidas sobre a existência de Deus?!?!?", "Todas e mais algumas", "Mas se está escrito no livro..."
De modo que penso, a espaços. Relaciono coisas. Por exemplo: no outro dia vi uma foto do M. tirada na Suíça que me mostrava um jogo de xadrez gigante, com pessoas em volta. Faz todo o sentido. O que peca no jogo é precisamente a diminuta visão que podemos ter dele, quando num tabuleiro ou, pior, na internet, com as pecinhas todas espalmadas e nós a vermos-lhes os cocurutos. Para o jogo de xadrez, é necessária visão e dimensão espacial. Para imaginarmos os ângulos, o jogo de vai e volta, o futuro das peças, a morte ou sobrevivência consoante as várias escolhas do agora. Fosse o xadrez um enorme campo de ténis e o desporto teria outra popularidade entre as gentes. E, no fundo, xadrez, ténis, bilhar, futebol, o jogo da parede ainda no velhinho ZXSpectrum são de um agnosticismo desarmante. Não chega crer, há que ir crendo, aos poucos, em ângulos, devagarinho, ganhando centímetros, teimando, desistindo, escolhendo vias, pondo em causa, acertando.
A religião é um bocadinho como aquele ser, muito de Cascais, que um dia conheci em estágios futebolísticos e que tinha como conceito de vida o limpar o rabo um número, reduzido e sempre igual, de vezes: se a merda resistisse, tanto pior.
Excelso, para não variar...
ResponderEliminarE se Deus existisse, o Benfica seria campeão...não agora, mas sempre...
De qualquer forma, ainda vou a tempo de me tornar crente, é só Ele mexer uns cordelinhos...Será que vou a tempo?
Abraço
Engraçado como falas em ZX Spectrum, no dia em que ele faz 30 anos! Ah... E chamava-se Arkanoid o jogo da parede...
ResponderEliminarSois gente de pouca fé irmãos... Então não crêem no título? Ficai sabendo, minhas queridas cavalgaduras, que deus é do benfica e tem bigode. O outro, com D, é do boca.
ResponderEliminarEu era mais match day... E o galaxian...
ResponderEliminareeeeeeeeewwwwwwwwwwwwwwww!!!!
ResponderEliminarLaser Squad, Multiplayer Soccer Manager, Track Suit Manager, North and South, Sito Pons, Sim City e, claro, Paradise Café. Horas e horas, dias e dias passei eu nisto.
ResponderEliminarFoda-se, um post tão bonito e vêm para aqui falar de joguinhos?
ResponderEliminar(Chuckie Egg, Bomb Jack, Aquaplane, Full Trotle, Renegade, Bruce Lee e Bionic Commando forever!)
Flying Shark, Ikari Warriors, MatchDay, Manic Miner, Striker, Chaos, Target Renegade e por aí fora...
ResponderEliminarBom texto :)
Mas que nerds são estes?
ResponderEliminarFalar grande zx spectrum e não referir o F1 é pecado.
ResponderEliminare ninguém fala do 1942, e do enter the dragon ? embora eu fosse mais do matchday e do matchday2
ResponderEliminarGreat Escape, Saboteur II, Arkanoid, Renegade I e II, Double Dragon, Track Suit Manager, Footbal Manager, Footballer of The Year I e II, Manic Miner, Chuckie Egg, Spy Hunter, Pac Man
ResponderEliminarPS: Nas arcadas, sempre e sempre, Tetris. Nível 99, mais de 5000 linhas, querem lá ir???? ☺☺☺
Matchday, moon alert, formula 1, paradise....
ResponderEliminarMuita bom para religioso, nao era preciso pensar... Agora para jogar um jogo é preciso um qi de génio.
Ah. Ganda post, já me esquecia... :)
Ricardo abriste as hostilidades e hoje é dia de liberdade, eu sou ligeiramente mais recente...
ResponderEliminarDIGGER, o camiaozinho que apanhava sacos do outro...
tardes e tardes de domingo a jogar F1 com mais 5 amigos. já nem me lembrava...
ResponderEliminarvou ver se consigo sacar isso :)
A minha religião é a LIBERDADE... e a honestidade...e a verdade... e odesapego... e a Paixão à Arte, na vida como no futebol;)
ResponderEliminarOs meus parabéns. Está fabuloso. Grande texto.
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