O mar devia ser vermelho. Nascia a meio do Atlântico, vindo de dentro das lamas da crosta terrestre, em jorros de groselha e espraiava-se até à costa em ondas de sangria. Quando tocava a areia, era vinho tinto.
As pessoas não se sentariam no areal à espera do sol. Deitar-se-iam todas de barriga para baixo, junto ao mar e abriam a boca. Isto exemplar e metodicamente executado, dia após dia, antes de irem trabalhar. Cada um entrando no ofício com os seus 2 a 3 litros de vinho tragados, preparados já para o laborioso construir do mundo.
Especialistas teceriam teorias altamente elaboradas sobre as vantagens do mar alcoólico - que harmonizava o ambiente de trabalho; que protegia o corpo das impurezas; que melhorava o desempenho sexual; que libertava a mente para uma viagem em que a fé e o espírito se encontram na comunhão dos sentidos; que isto, que aquilo, que.
No emprego, um estagiário dar-nos-ia cigarros à entrada.
- Quer com ou sem filtro? Junto-lhe pólen ou prefere Jack Herer?
As pessoas seriam mais pessoas e menos fiscais de vidança. Cada uma no seu cogumelo, pululando pelo escritório em círculos, cheiros, fumos, derivações e delírios. O Chefe estaria sentado no centro de tudo, tentaculando um narguilé aos seus trabalhadores:
- Antunes, não quer fumar? Deixe lá esses relatórios e venha repousar o corpo nestas almofadas sírias que acabei de comprar no Ebay.
Ninguém comeria legumes. Aqui e ali um nabiça ou um alho porro, para quando se fizessem festas para clientes muito chatos entregues ao fastidioso labor da mudança de mundo. No resto, troncos de carne mal passada, peixe fresco, montanhas de pão e queijo da serra derretendo ao sol. Presuntos largando gordura no canto das redacções e em baixo dois ou três estagiários amparando delicadamente o suco, desviando-o para um grande funil de onde sairia uma mangueira que transportasse o néctar até aos inválidos - os que não se podiam mexer por razões terapêuticas e os outros, os que já não tinham condições para mexer um dedo.
Entrava-se às 4 da tarde no trabalho e às 5 as portas abriam para o fechar de turno. Entravam outros. E cada um que saía, dirigia-se ao mar para beber ou vinho ou sangria ou groselha, consoante a potência do veleiro que tivesse. Os mais pobres, agachados sobre a areia, tinto carrascão; o de classe baixa, porque tinha barco a remos, vinho de eleição; a classe média, com aquela mota de água comprada a crédito, afastava-se da costa 300 metros e sorvia a sangria mais aprazível sob um sol feito morango; classe alta, quase só groselha. Aos milionários, de tempos a tempos, era facultada a experiência de descerem até às restingas do mundo nas quais se banhavam loucamente, acreditando estarem perante a fórmula mais secreta de eternidade.
No fim, todos morriam, como morrem hoje. Mas evitava-se esta coisa chata de fumar à porta dos restaurantes, no frio e humidade que cortam ossos; as preocupações com o colesterol que originam mais colesterol; as frases exemplares de gente muito saudável
- olha que isso faz-te mal.
Podia até chegar o ponto de se promover o tabaco nas escolas. Digo nas escolas mas penso nos infantários. Ou nas maternidades. "Fume, que faz bem, e dê ao seu bebé uma passa". Morria gente, naturalmente. De cancro, doenças pulmonares, sífilis, gangrena, sida, tuberculose, alcoolismo primário. Ninguém sobrevivia. Como hoje. Mas não tínhamos os ouvidos cheios de frases exemplares de gente exemplar que quer dos outros fazer exemplares exemplos.
Os jogadores de futebol fumariam os seus cigarros depois das refeições. E os adeptos fumariam os seus cigarros depois das refeições. No computador, amantes de futebol teriam vídeos dos jogadores a fumar depois das refeições os seus cigarros da marca do clube. Marca Benfica: "um cigarro estudado especialmente para os desportistas"; "Forte e suave, o cigarro dos campeões".
E o youtube tornar-se-ia viral, com os ídolos fumando Marca Benfica. Penso em Artur e Cruz, exemplos do mais puro e degradado humanismo. Degenerados do mundo, certamente merecedores de punição exemplar por parte dos defensores do tofu mais apetitoso e do pulmão mais brilhante. Párias da sociedade, entregues a um cigarro que os matará - oh se matará! - e provavelmente após um repasto sem qualquer tipo de composto vegetal transformado por químicos.
Sociedade demencial, essa do passado, em que até permitiam gente a fumar em cinemas, grandes postas mirandesas, cozidos, feijoadas, loucas panelas de couves tronchudas decoradas a farinheiras, morcelas, doidos chouriços. Nos restaurantes, fumava-se depois da refeição - a ignomínia! -, nos cinemas, bebia-se - a afronta! -, nas casas, fazia-se sexo - o pecado! -, na rua, havia quem não corresse de calções e ténis com ar de canguru saudável - o desprezo! -, e talvez houvesse mesmo quem não achasse graça nenhuma aos penetrantes activistas que, à falta de amor ao desporto, o relacionam com tudo o que de mal ocorre no planeta. Talvez.
Mantenho-me sentado na mesa. Comi bem, não quero levantar-me. Agora vai um conhaque para molhar os alimentos e um cigarro Benfica para encher o restaurante de fumo e vozearia. Cruz, dá aí lume:
faz sentido o pressuposto...
ResponderEliminarFantástico Ricardo.
ResponderEliminarAlgo de Huxley, algo de Orwell e uma pitada de Hemingway.
Makes my day. Obrigado.
Cumprimentos
Como se diz agora.....
ResponderEliminarGOSTEI.
Epah, demais! Que maravilha! Obrigado por este momento.
ResponderEliminarAbraço.
Sem dúvida...
ResponderEliminarOs cigarros Benfica já vêm de anos anteriores, bem anteriores, aliás!
Lembro-me de andar a pesquisar em jornais Republicanos, nomeadamente em 1912-20, talvez, e, já nessa altura, se publicitava o cigarro do Maior...
Isto é história, isto é portugalidade...
E quando postada com um texto à Ricardo, ganha ainda um relevo maior...
Carrega Benfica!
Maravilha!!!
ResponderEliminarRicardo mais uma vez delicias todos com o teu português e com o teu BENFIQUISMO!
ResponderEliminarGrande abraço, Viva o Benfica
Mas que delícia!
ResponderEliminarObrigado, pá.
Agora já não há Cigarros Benfica, só vinho, cerveja ou whisky Benfica
ResponderEliminarAHAHAHAHAAHAHAHA muito forte!
ResponderEliminarCaro Ricardo,
ResponderEliminarQuando um gajo vai a um bar e pede um copo, ou janta num restaurante, no final pede a conta e paga.
Vir a este blog, ver esta foto, texto e finalizar com este anuncio maravilhoso e no final sair sem pagar nada até me faz sentir mal.
Mas leio regularmente os teus textos e imagino que um misero, mas sincero obrigado, já não seja mau.
Abraço e por favor, continua,
PN