quinta-feira, 28 de junho de 2012

Kentucky Fried Entremeada*

 
 
 
Ali, onde agora vive um senhor mamarracho de nome Colombo, era um baldio de terras aos solavancos, couves, armaduras de príncipes antigos e casas da idade do Fernando Pessoa. Ali, onde a esta hora senhoras elegantes e meninas petulantes encontram mais uma fantástica bugiganga para encher a vaidade dos quartos e salas de estar, foi, um dia, um parque arcaico de estacionamento, um caminho tortuoso até à catedral e uma enorme sala de repasto benfiquista. Ao ar livre, como tinha de ser.

O carro estacionava-se a 2 quilómetros do Estádio e a partir daí punham-se galochas e enfrentava-se o lamaçal. Antes de chegarmos ao repasto, deliciava-nos todo aquele benfiquismo em forma de gente: grupos de 10, 15 pessoas faziam círculos imperfeitos em volta de uma fogueira, de um fogareiro e de uma panelona digna de reis que no seu interior aquecia e amparava um bruto cozido à portuguesa ou, para os mais sensíveis às vicissitudes das transformações gástricas, um belo de um caldo verde, recheadinho com chouriço do melhor que podia haver; para beber, tinto, que era a cor e bebida naturais de quem, por dentro, levava acesa a chama imensa.

Normalmente, eram homens, pais e filhos, poucas mulheres e ainda menos filhas. No entanto, a equipa feminina de cada família tinha também o seu ofício, visto que vinham das mãos delas os repastos que tanto aconchegavam o estômago e o coração dos seus mais-que-tudo. A fome e a sede, ali, naquele sítio onde hoje ardem galinhas de Kentucky e carnes do Sr. MacDonald, não eram mais do que a medida certa para o impulso de noites de glória. Começava com o ritual de comer e beber; acabava em goles de golos.

Para quem não levava metade da casa atrás, esta era uma visão que aproximava e apaixonava e servia de entrada ao que viria a ser a refeição, sentados que ficávamos em banquinhos corridos de madeira rodeando as casas de repasto, quase sempre entregues a famílias inteiras. O ritual era simples: fazia-se um rectângulo de balcões, em volta bancos para os benfiquistas não comerem de pé e lá dentro era uma festa de cerveja, vinho e cheiros de carnes com muita gordura. Para os meninos, trina de laranja, para os pais, vinho em barda, que a noite era uma criança. Nos entretantos, enquanto se trinchavam pedaços de entremeada, febras e as sopas iam ao lume, e regados, bem regados, a cerveja, a tinto, a branco e, para os mais friorentos, a abafadinho, discutiam-se onzes, dizia-se mal do treinador (sim, já na altura acontecia) e ansiava-se pela hora da visão gloriosa de um relvado iluminado por 4 focos de luz. 
 
Os pais faziam a sua pedagogia, perguntando aos filhos o nome dos 11 heróis que iriam entrar em campo, os filhos acertavam em 3 ou 4 jogadores mais conhecidos e de tempos a tempos até aparecia um que falava no nome de um jogador de um rival nacional. O pai não gostava, batia com o copo com força na madeira e gritava: "esse é lagarto, filho!" e o filho, que nunca se tinha apercebido de que os homens tinham a capacidade de se metamorfosear em répteis, bebia mais um gole de trina enquanto dizia para dentro que nunca mais abria a boca para dizer o nome daquele jogador.

E o mais bonito de tudo era quando, na mesma mesa, se juntavam avô, pai e filho. E todos eles, ali sentados em redor de um objectivo, apesar das idades, a sentirem o mesmo: a pulsação acelerada, a ansiedade, o nervosismo, a paixão. Todos eles com o coração da mesma idade. 
 
 
* texto com 3 ou 4 anos recuperado porque bateu uma saudade louca do meu Estádio da Luz. Do verdadeiro, do meu, do nosso. Agora é outra coisa.

5 comentários:

  1. Lindo pá!

    Ainda me lembro de sair da velhinha e saudosa Luz e olhar para aquele espaço de lama e de piscinas a céu aberto...

    Bons tempos...

    Das imensas recordações que tenho, retenho a imagem daquelas entradas em campo, jogadores a correr, benzer e saltar, saudando o 3º anel...

    Ah, e o Bento, esse enorme guarda-redes, a acenar para o topo Sul...

    Carrega Benfica!

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  2. Essa é a mítica Luz que não se apaga dos nossos corações. Onde a mística não era algo que só os jogadores conheciam, também os adeptos sabiam o que era a mística. Quer da Luz, quer do vale do Jamor onde íamos à dobradinha ou salvar a época.
    As saudades que eu tenho dessa Luz e desse Jamor. As saudades que eu tenho dos benfiquistas com mística, para quem não bastava ganhar, tinha que se golear ... Outros tempos, outros benfiquistas ...

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  3. Temos que recuperar o coração... temos que recuperar o coração!

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  4. Belo texto, Ricardo. Onde está hoje o Colombo era onde eu costumava esperar pelo 50, aos domingos à tarde e às quartas-feiras à noite, no regresso a casa após os jogos.

    Abraço.

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Vai ao Estádio, larga a internet.