Permitam-me
que partilhe convosco este bonito texto do Joel Neto. Um texto de um
sportinguista num blogue benfiquista? Sim. Porque o futebol do Joel é composto por sentimentos que vão muito para além dos puramente clubísticos. Porque o futebol do Joel é
pleno de amor. Porque o futebol do Joel é o meu futebol.
Deliciem-se, se fizerem o favor.
"Tudo o que eu devo ao futebol
Nenhuma
literatura alguma vez fez isto por mim. Nenhuma poesia, nenhuma arte, nenhuma
filosofia. Fê-lo o futebol.
JOEL NETO
(autor do romance
“OS SÍTIOS SEM RESPOSTA”, Porto Editora 2012)
De cada vez que me sento num estádio, ou me
ponho em frente ao televisor, ou me curvo diante de um transístor, não é aquele
jogo que vejo, não é aquele jogo que ouço. Estou em 1989, faltam dez segundos
para Fernando Gomes atirar à barra o penálti que impedirá o Sporting de bater o
Nápoles de Maradona – e aí vai ele, Gomes, com a bola na mão, caminhando entre
o círculo central e a grande área, o olhar pregado na relva como quem sabe que
lhe caberá a ele a dúbia honra de glorificar a nossa derrota. Estou mais longe
ainda, aliás: estou no Verão de 1987 e Vítor Damas anda aos gritos em cima do
risco de golo, a correr de um lado para o outro da baliza e a fazer exigências
à descoordenada barreira do Sporting, enquanto Dito, Nunes e Diamantino parecem
discutir quem marcará o livre directo cedido instantes antes por Ralph Meade –
e já aí está Diamantino, partindo para a bola à falsa fé e ali mesmo começando
a desequilibrar, de modo ao mesmo tempo infecto e irremediável, a final da Taça
de Portugal, a nossa primeira vaga oportunidade de compensar cinco anos sem
títulos de qualquer espécie (isto num tempo em que cinco anos sem títulos de
qualquer espécie ainda eram uma tragédia, note-se), e que, não por
coincidência, morreria aos pés do Benfica.
Ao meu lado está o meu pai, ainda jovem.
Olho-o de soslaio, como que voltando a tentar desvendá-lo. Todos os dias o vejo
sair e regressar a casa, com a sua impecável farda azul – e é quase tudo. Não
sei ainda o quanto o admirarei no futuro. Não sei ainda o papel que terá no meu
olhar sobre o mundo a sua honestidade férrea. Não faço ideia sequer de que está
já plantando em mim a semente renovadora (e até um pouco maligna) da
auto-determinação, incutindo-me a urgência de suplantar o destino que me parece
guardado. Ou talvez comece já a intuir alguma coisa, não sei. Estamos na
cozinha fria dos Açores. Lá fora, o silêncio. Não passam automóveis na rua em
dias de futebol – os próprios melros parecem suspender o seu desenfreado canto
quando joga o Sporting. Há como que um estertor de ansiedade por dentro do meu
pai. Ondas peristálticas percorrem-lhe o pescoço, o peito, o estômago – e, no
entanto, nem um esgar, nem um salto incontido, nem um gesto de impaciência. Até
que se confirma que perdemos. Perdemos sempre, na verdade. Sempre que é
importante. E então ele ergue-se silencioso, tossica a sua tosse tímida e
nervosa, como que dando por concluída a tarefa mais irrelevante e aborrecida do
dia – e desaparece lá para trás, para o quintal, onde passará a noite com um
maço e um escopro, abrindo buracos sem razão aparente, e que no fim-de-semana
seguinte se ocupará de tornar a tapar, assim o Sporting volte a perder.
Ao significado de tudo isto, demoro ainda
muito tempo a percebê-lo. Nos quinze anos seguintes haveremos de viver a dois
mil quilómetros um do outro – e mesmo quando, a dada altura, uma parte do meu
ano começar a ser vivida não a dois mil quilómetros dele, mas a cem metros
apenas, a distância entre nós demorar-se-á a mesma. E, contudo, continuaremos a
ter o futebol. Teremos sempre o futebol. Mesmo que não encontremos mais nada
sobre o que falar um com o outro, haverá o Sporting. Às vezes ainda tentamos
fugir-lhe. Fugir-lhe, não: transcendê-lo. Não há razão para fugirmos do
Sporting, afinal: o Sporting sempre nos partiu o coração, mas o que lhe devemos
é já muito mais importante do que a simples alegria. Tentamos diversificar a
conversa, digamos. Falamos do trabalho. Dos afazeres. Da crise. Da meteorologia
– e, enfim, outra vez do Sporting (ou da selecção nacional, durante as grandes competições
internacionais), agora menos frustrados com o fracasso dos outros assuntos do
que gratos por aquele maravilhoso lugar a que poderemos voltar sempre. E, a
certa altura, já nem é sequer uma possibilidade de comunicação, aquele jogo: é
uma declaração de amor. Como, se calhar, se limitou sempre a ser: apenas a
única maneira que encontrámos os dois de dizer um ao outro que nos amávamos,
sem termos de efectivamente utilizar essas palavras.
O pai. Julgo que não me engano se disser que
a idade adulta começa no momento em que um homem é pela primeira vez capaz de
admirar o seu pai. O meu pai. Tenho a certeza de que, por muito que me tivesse
esforçado, e ainda que o houvesse mesmo feito, eu jamais teria conseguido ser
durante cinco minutos metade daquilo que ele foi ao longo de toda a vida, sem
uma hesitação, sem uma ressalva, sem outra intenção que não apenas sê-lo. E que
ainda é, aliás. Muitos escritores fizeram questão, algures ao longo da vida, de
homenagear o pai. Fizeram-no muitas vezes a título póstumo, outras tantas
quando ele se encontrava no leito de morte. Fizeram-no como forma de estender o
braço, de recuperar o tempo perdido, de vencer a distância. Toda a literatura é
isso, provavelmente: o impulso de vencer a distância, a irredutibilidade desse impulso.
A mim, o momento de fazê-lo sobreveio-me talvez mais cedo do que a outros
(embora mais tarde do que a muitos também). Chegou quase como uma epifania, sem
se anunciar, quando eu sabia já que queria falar por uma última vez de futebol,
mas ainda não porquê. E chegou avassalador: tomou o texto nas mãos e foi por aí
fora, instrumentalizando-nos a todos, as pessoas, os lugares, os objectos, a
rotinas, os cheiros – todos reduzidos a não mais do que ferramentas, como se a
nós próprios não nos restasse mais do que abrir buracos sem razão aparente,
talvez apenas para que pudéssemos fechá-los mais tarde, ainda que de novo por
nenhum motivo que não o de manusear buracos.
Ao livro que resulta desse exercício decidi
chamar-lhe “Os Sítios Sem Resposta”. A vida, se alguma vez puder ser reduzida a
um sentido só, não passará provavelmente disso: de uma deriva pelos espaços que
nada têm para dizer-nos de volta, da procura de um lugar a que possamos chamar
nosso, do desorientado mas furioso caminho de regresso a casa. Mas, sobretudo,
foi ao lado do meu pai que eu li pela primeira vez esse verso, esse maravilhoso
poema de Tolentino de Mendonça que eu nem imaginava ainda roubar. “Regressamos
a uma terra misteriosa/ trazemos uma ferida/ e o corpo ferido/ imprevistamente
nos volta/ para margens mais remotas// (…) para além do jogo das nossas
defesas/ qualquer coisa interior/ a intensa solidão das tempestades/ os campos
alagados,/os sítios sem resposta// o teu silêncio, ó Deus, altera por completo
os espaços.” Era sábado, eu estava à beira da mais importante e dramática
decisão da minha vida (um momento puramente revolucionário, talvez, mas isso
agora é o menos) e tinha por acaso o meu pai a meu lado, em Lisboa. Por acaso,
não. De maneira nenhuma por acaso: alguma coisa nos dissera que devíamos estar
juntos naquele dia, naquele tempo – alguma coisa dentro de nós nos encaminhara
para ali. Passámos a tarde juntos, em silêncio, deambulando pela casa. Foi aí
que eu o li. “Silêncio.” E então, sim, entrámos no meu Smart. Abrimos o tejadilho.
Pusemos um disco de funk – e dirigimo-nos para Norte.
O Sporting, naturalmente, perdeu. Se
ganhasse, conquistaria também o campeonato, pondo fim a novos quatro anos sem
títulos de importância alguma. Durante mais de uma hora, o Sporting em cima deles.
Ataques pela esquerda, ataques pela direita, determinação defensiva,
resiliência. O Sporting comovente, como tantas vezes é o Sporting, sobretudo se
a caminho de mais uma bela derrota. Pelo menos, eu recordo-o assim: abnegado e
comovente. Até que, aos oitenta e quatro minutos, um pontapé longo do
guarda-redes adversário. Para além do jogo das nossas defesas, qualquer coisa
interior. O corpo ferido. Dois toques, uma triangulação – e nós reconhecendo já
aquilo, aquele ritmo, aquela melodia. O silêncio. A intensa solidão das
tempestades, os campos alagados, os sítios sem resposta. Um remate – e, pronto:
golo do FC Porto. O teu silêncio, ó Deus – o teu silêncio altera por completo
os espaços. Golo do FC Porto e, de novo, o fracasso. Mas, de novo também, não
apenas meu. Não apenas dele. Nosso. O estádio atónito, insultos trocando-se
entre adversários, murros digladiando-se entre amigos. E nós ali. Um ao lado do
outro. No silêncio de sempre – voltando à cozinha fria dos Açores, ouvindo
outra vez suspender-se o canto dos melros e, enfim, dispersando, ele para o
escopro com que abriria buracos pelo quintal, eu ao quarto da infância, onde
poria uma almofada sobre a cabeça, para reprimir as lágrimas, e tentaria dormir
até ao fim-de-semana seguinte.
Nenhuma literatura alguma vez fez isto por
mim. Nenhuma poesia, nenhuma arte, nenhuma filosofia. Fê-lo o futebol. E
dedicar-lhe um romance, bem vistas as coisas, é pequeníssima penitência para
tão grande milagre."
Cá pro imbecil do luis representa a "dor"...tempo.
ResponderEliminarRespeitarei sempre o Joel e o sportinguismo que é o seu.
ResponderEliminarObrigada JC pela partilha do texto.
Esta cena do ataque e contraataque falo da rivalidade entre os clubes - diz-me nada - as pessoas são pessoas!
ResponderEliminarEssa treta dos conflitos interessa a uns quantos - poucos... nós só entramos nesse jogo se formos anjinhos!