Enquanto
o champanhe inundava os óculos de cientistas meticulosamente geniais
num lugar distante, a mãe de Pablo sorria em frente a um álbum de
fotografias que abria com os olhos grandes e as mãos como pinças, não
fosse sujar aquele ouro das memórias. Estava descoberto e comprovado e
analisado e festejado o Bosão de Higgs - massa-matéria que vinha
corroborar o que a mãe de Pablo já conhecia: o universo fazia algum
sentido.
Pablo
em cima de uma bicicleta, Pablo com perna estendida e uma bola no ar,
Pablo a sorrir, o sinal de Pablo, o cabelo desgrenhado de Pablo e Pablo
feliz, com amigos. A vizinha que tinha vindo aos soluços pela rua, com
cuidado para não ferir mais aquela dor das costas que a lançava no
desvario das noites em claro, chegando à casa da mãe de Pablo pediu
pimentos e, se possível - não fosse o exagero -, algumas batatas para o
almoço, cinco dedos de conversa e alhos e algum conforto - um "está bem?
tenha cuidado com essa dor", algo que a apaziguasse e a enchesse de um
sentimento de não andar no mundo sem explicação nem gente que se
lembrasse das suas insónias.
A
mãe de Pablo tinha uma panela fumegante ao lume, esquecida, crematória,
quando abriu a porta e disse para a vizinha entrar. O álbum de Pablo
aberto e virado ao contrário sobre uma mesa - os dentes de Pablo contra
uma mesa de madeira, um sorriso estancado no vapor dos legumes. A mãe
chamou a vizinha para um descanso, pôs-lhe a mão nos joelhos macerados e
disse-lhe: "este é Pablo, há muitos anos". E mostrou-lhe Pablo com
perna estendida e uma bola no ar, Pablo a sorrir, o sinal de Pablo,
Pablo em cima de uma bicicleta, e sorriu e gargalhou da mesma forma com
que tinha gargalhado e sorrido cinco minutos antes, na altura em que os
dentes de Pablito não estavam assim, daquela forma quase violenta,
contra um muro de madeira, à espera que a sopa e a vizinha se alargassem
para o mundo.
A
mãe fazia comentários sobre as fotografias do filho. Contava histórias,
lembrava-se de outras que não estavam naquelas imagens paradas, punha
vezes sem conta a mão nos joelhos e nas mãos da vizinha e ninguém - nem
os cientistas que bebiam champanhe de óculos embaciados - podia
adivinhar o aperto que lhe subia ao coração e à boca, à garganta, o
orgulho misturado com sede de tempo. Comentava: "está em Portugal, tenho
aqui um vídeo" e a vizinha forçada a permanecer de joelhos sem pimentos
nem batatas e o marido à espera ali a três ou quatro casas destas
imagens:
A
mãe apertava as pernas da vizinha enquanto cantava "Pablo, Pablito
Aimar..." e a vizinha fechava-se numa dor que estava quase a rebentar os
joelhos para um respeito sem mácula, devoção, pedaços de imagens de Pablo a
fazer aquilo nas ruas, em casa, na cozinha com e sem pimentos, batatas que
tinham servido há muitos almoços e jantares atrás para uma sopa que esperou Pablo aos chutões tempo
demasiado e arrefeceu. Que batatas e pimentos eram aqueles? O que seria feito
deles, desceram pelos corpos e saíram do outro lado da horta e voltaram a
crescer e a ser pimentos e batatas e sopas atrás de sopas, todos à espera de
mais um golo de Pablo numas balizas de mochilas da escola?
A
mãe de Pablo desconhece o Bosão de Higgs. Se lhe falassem disso, enrolaria os
olhos, diria que trabalha desde criança e que essas coisas são feitas para os
homens do mundo. A vizinha inventaria algo e até arriscaria uma muito
pertinente questão: esses bosões dão para meter no tacho? e depois iria à sua
vida, de joelhos cheios de dores e um saco de pimentos e batatas que a mãe de
Pablo lhe oferecera enquanto via o sinal na cara do filho e pensava sobre essas
coisas profundas de levarmos na cara e no corpo e no coração marcas iguais de
criança a homem, de menino a estrela. Sinais de deus.
Oh meu grande sacana...está sublime...
ResponderEliminarUm abraço deste Abrantino,
Pedro
Não metas fisica nestas cenas meu... porra lembro-me logo da quimica... apre nem na bola me vejo livre dos meus fantasmas...
ResponderEliminarFoda-se! Que delícia!
ResponderEliminarJá eu descobri deus (e não apenas uma sua partícula) há uns anos atrás no bujão da Célia.
ResponderEliminarO endeusamento de Aimar já me molesta um bocado, mas isto está muito, muito, muito bom!
ResponderEliminarParabéns Ricardo.
Esta rabona é fenomenal, mas mesmo assim houve quem achasse que foi aleatória, que ele queria era tirar dali a bola. Os factos de que a) a bola caiu no espaço livre à frente do Suazo e b) o Suazo fez golo não significam nada, claro.
ResponderEliminarMas o meu momento favorito do Aimar é este:
http://www.youtube.com/watch?v=io2FMwKEFk8
Delicioso!
ResponderEliminarAlguém que traduza e envie isto para Rio Cuarto :)
"mas mesmo assim houve quem achasse que foi aleatória"
ResponderEliminarhahahaha...vindo de quem foi não é de admirar. Já se fosse um Rolando ou um Micael...ui..hahahah
Shankly, Aimar sem envergar o Manto Sagrado? Isso aconteceu? É Photoshop não é? ☺☺☺☺
Quem é que disse que foi alienatório? O Kodro?
ResponderEliminarGrande texto, Ricardo!
Pedro, imagino que sim. Aliás, tenho quase a certeza de que estava na Luz quando isto aconteceu :)
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