sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Morreram os heróis

Já quase não tenho heróis. Passam-se os dias, conversa-se com muita gente, os assuntos acabam batidos, encostados a paredes de cafés onde há muitos anos assistiram a conversas nossas elogiando heróis. 

O relógio da Sagres, muito encardido e velho, com uns ponteiros pequenos, finos, a passarem segundos depois minutos, horas, há quanto tempo, mesmo? Houve um dia, vários dias, em que ele acompanhou as conversas, fez-se presente, terá comentado para si mesmo: estes putos acreditam. Quantas vezes o mirei, de surra, quando o jogo do Benfica estava a acabar e ele parecia impávido, teimoso na sonolência que os relógios têm de não avançar. Só por despeito, birra, implicação sem sentido. O Benfica a ganhar em Paços de Ferreira ou em Donetsk ou então em Oslo, e ele agarradinho, maldoso, à parede, fazendo movimentos pautados, um atrás do outro, sorvendo o desespero de tão circular. Tenho para mim que, enquanto olhávamos na televisão o frio desarmante do medo de não ganharmos, ele se pôs aos soluços e compassos só para o árbitro não notar que o tempo tinha chegado ao fim.

As mesas de mármore para onde não raras vezes atirei o meu punho fechado num golo adversário - o que levantou grande indignação do dono, uma vez que a caneca voou, voaram pratos de moelas e febras com limão, tudo no chão, agarrados peganhentos aos mosaicos de fúnebres momentos de luto. A mesa, no entanto, sólida, como se não fosse nenhuma tragédia um golo que não o do Benfica. Também sofreu de amores, recebendo no peito duas dúzias de lágrimas naquela vitória sem sentido num lugar qualquer de que não me lembro. E amparava os cotovelos de forma sublime nas vezes em que o golo estava quase lá, está lá dentro, e depois desaparecia no meio de braços no ar à espera da conclusão: a mão ia à testa, desesperava, mas o tampo de mármore ali tão presente, por onde agarrávamos os nossos desejos e inquietações, fazíamos figas, quase morríamos.

No fundo, próximo da janela, a arca frigorífica que nos lançava furtivos olhares: tenho cornetto e tenho perna de pau. Gelava por dentro sempre que um adversário falhava um golo quase certo. E quando não falhava, gelava na mesma. Bebíamos cerveja ou vinho, comíamos, os gelados servem exactamente para quê, quando o Benfica está a jogar?

O Senhor Manuel irritava-nos: umas vezes porque se punha à frente da televisão, trazendo-nos canecas (não conhecerá o ângulo perfeito entre o entregar do suco e o deixar a visão perfeita?), outras porque desesperava mais do que nós e punha-se a inventar problemas: "como é que podemos ganhar com aquele tosco a extremo-direito?". O Senhor Manuel não sabia e ainda hoje não sabe o poder homicida que se origina a partir da ausência de imagem ou da presença de comentários insultuosos contra a escolha do onze titular. Parece-me que estivemos por várias e gastas vezes quase-quase na loucura dos crimes provincianos. Mas depois trazia amendoins e a coisa acabava por se rebater num apoio inequívoco ao nosso Benfica. Apoiávamos porque não podíamos empurrar os jogadores para o golo. Talvez se sentissem o nosso bafo, talvez, mas ainda não inventaram a tecnologia do apoio via Panasonic de 94 para o mundo - o que acho mal, porque a esposa do senhor Manel esteve com o coração na boca, julgando-se já prematura no luto, em demasiadas e tristes ocasiões.

É possível que já não tenha heróis, neste mundo de benfiquistas ausentes de benfiquismo. Todos tão apoiantes e tão dignos, defensores de um Benfica que deixou de existir - agora defende-se o ódio aos outros como forma de acalmar mágoas e educações traumáticas. O Benfica deixou de ser o clube do povo para aterrar no planeta das confusas justificações e bebedeiras mentais. Houve algo que morreu no processo, enquanto ainda sonhávamos com um golo aos 90+3 que nunca mais chegou.

Mas tive heróis. Eram muitos e todos completos: os carros às buzinadelas e os cachecóis presos aos vidros - ultrapassávamo-los e admirava aqueles seres, do fundo do meu lugar de trás: mirava-lhes as faces, estudava as famílias e os sorrisos felizes de irem professar; os gordos de cara encarnada que me ofereciam febras entre a lama contagiante do estágio; aqueles homens, garbosos homens, que, no meio de um Benfica-Guimarães, estádio cheio numa tarde solar, conseguiram deslocar os corpos para que eu, puto, me deitasse numa repentina quebra de tensão. Estes eram os heróis. Bastava terem o orgulho estampado no corpo de serem benfiquistas. Ainda bem que não existia internet nem lugares públicos onde demonstrassem toda a sua falta de benfiquismo mais primário. Ali, sem saber o que pensavam nem o que diziam, eram só afectos e acções. Benfiquismo ligado ao coração.

Tive um herói, maior do que todos os outros: o meu Pai. Quando chegou de Estugarda e de Viena, vinha com o benfiquismo ainda mais saliente, como se fosse possível inventar novas asas que saíssem de uma desilusão dilacerante. Das duas vezes abraçou-me e chorou comigo. E foi logo à estante buscar os livros que contavam as histórias do Benfica. É esse que trago junto ao peito até me tornar merecedor de uma pedra no chão. Até lá, não vou suportar filhos da puta que não defendam este glorioso clube das hienas que o querem comer.




12 comentários:

  1. O teu Benfiquismo chega a ser comovente, Ricardo. Percebe-se que bebeste em boas fontes. O amor intenso pode cegar, mas não deixa de ser tocante a forma como o escreves :).

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  2. É assim... os velhos tempos já lá vão.
    Falta a chama imensa... é isso que falta a este Benfica demasiado mergulhado nas conquistas do passado e na tristeza do presente.
    O Benfica é do povo e cada vez se está a distanciar mais desse povo humilde, corajoso e sonhador... se calhar é por isso que chegamos a esta condição... por sermos tão humildes e crentes.
    Heróis meu amigo lembro-me de alguns que vi a jogar e que vi o SL Benfica a dar-lhes um chuto no cú... João Vieira Pinto, Isaias, Victor Paneira... enfim são 20 anos de depressão profunda.
    Resta-me a esperança e até essa está a começar a ficar abalada.
    Comprimentos benfiquistas numa tarde chuvosa.

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  3. um abraço, Silveirinha. li este post enquanto espero na barbearia do costume que me cortem o cabelo. Quero o Benfica das barbearias de volta. Nas barbearias vêem-se Torres, Coluna, Magalhães e Isaías, não se vêem nas paredes - felizmente - Perez ou um qualquer Anderson. Estes mestres na arte de cortar o cabelo à antiga sabem bem o que fazem na nossa cabeça.

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  4. Grande post Ricardo, como sempre sente-se o Benfica em cada palavra, em cada detalhe. Fizeste-me lembrar o meu avô, as histórias que ele me contava dos feitos do Benfica e da maravilhosa equipa de 60, aquela admiração que parecia eterna, o saudoso amor ao clube, a gloriosa nostalgia, nessa altura o que não faltavam eram heróis, os que jogavam futebol de rua, descalços, a bola substituida por trapos, a tentarem imitar Eusébio, Coluna e companhia. Hoje parece que foi tudo substituido por um sentimento plastificado e inerte.

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  5. Creio que todos nos compreendemos bem... falo dos vivos!... não sei se me faço entender...

    Existe no putrefacto cheiro dos negócios e do dinheiro algo de odioso que nos faz querer mudar de terra, de gente, de planeta... existe no putrefacto cheiro dos unanimismos as mortes, todas as mortes ... antecipadas, vividas, experiênciadas... malditas!

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  6. Caro Ricardo,

    Parabéns por mais um excelente texto.
    Eu, sendo do Porto, também já tive heróis anónimos no estádio da luz. Eram os simpáticos e desconhecidos senhores que permitiam que pudéssemos ver os jogos de graça.
    "Posso entrar consigo?" era a frase repetida vezes sem conta. Nunca fiquei de fora...

    Abraço,
    PeLiFe

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  7. E a Panasonic de 94 ainda foi a tempo do último Benfica, e dos seus heróis.

    Já eu, não fui a tempo de nenhum. E é esse sentimento de perda - mesmo que nunca sentida a posse - que me desilude no Sport Lisboa e Benfica.

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  8. Eu ainda tenho esse herói..
    Foi o que me ensinou a mesma linguagem que tu escreves e falas. Benfiquismo. Puro.

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  9. Como é bom ler um post a recordar-nos do que é importante preservar, o sentimento benfiquista puro e duro, por muito que o tentem transformar em acções e com indivíduos que nada têm a ver com essa gloriosa história.
    O problema é os heróis aburguesaram-se, acomodaram-se e aceitam hoje aquilo que nunca aceitaram antes ...
    É um sinal dos tempos

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  10. "É um sinal dos tempos" - B Cool...

    Que os tempos sejam de coragem e entrega!

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Vai ao Estádio, larga a internet.