terça-feira, 25 de setembro de 2012

Restaura-me o Benfica






Em noites destas, cheias de água a cair das estrelas, ou no calor do sol de Lisboa, acontecia sempre o momento "vai lá fazer compras que eu vou com o puto ao Benfica". A minha mãe baralhava-se muito com estes momentos porque lhe parecia que, para o meu Pai, o Benfica era em todo o lado, e, apesar de imaginar com agrado umas horas de libertação feminina - sem homens ao redor, com ar de enfado, enquanto ela experimentava aquelas peças de roupa extraordinárias que obviamente lhe faltavam no armário; feitos para ela, como recusar? -, sentia com preocupação aquela coisa de estar em todo o lado o Benfica. 

No meio da estrada entre Borba e Vila Viçosa, entre as montanhas de mármore, ou nas profundezas das serras minhotas; nos largos canaviais do Oeste, debruados a pinhais e ondas a bater nas rochas, ou no frio de Trás-os-Montes, onde era possível - pensava ela - que ali, naquele sítio agreste, não havia Benfica, sempre aparecia o momento em que o meu Pai dizia: "vai lá olhar as pedras ou cheirar o verde lacrimejante do Minho ou ver o horizonte do mar que, se for corrido em frente, vai dar ao fundo dos astros... que eu vou com o puto ao Benfica". Não havia segunda escolha, o Benfica estava mesmo em todo o lado.

Eram noites como as de hoje, em que a água se estatelava nas pedras do chão, ou então eram dias que reflectiam o Sol nas paredes das casas de Lisboa e nos inundavam os olhos com uma cegueira momentânea e que sabia bem a beber cerveja, que abandonávamos a minha mãe ao desafio da faina em centros comerciais em caves bafientas onde se juntavam as melhores modas mundiais com tabacarias a cheirar a cigarrilhas. Não sei se ia feliz, mas aceitava a omnipresença do Benfica como um facto a que não podia recorrer em tribunal - "Consegue provar que não há Benfica em todo o recanto do mundo?". Talvez fosse mais fácil aceitar os desígnios divinos e absorver-se, ela, nos requisitos humanos. E era assim que nós - eu, o puto, e o meu Pai - iamos passar mais uma tarde, ou noite talvez, à sede do Benfica.

A sede do Benfica tinha aquele orgasmo especial de se anunciar ao mundo sem medos - um enorme símbolo inundando duas ruas, encostando-se tranquilo no "v" que as esquinas fazem. Era logo uma alegria ver o Benfica escarrapachado nas paredes, a águia tanto mirando os que subiam como os que desciam, embora esta segunda versão não fosse aceite em todos os debates mais acesos. Havia quem dissesse que a águia só olhava para um lado, com medo do futuro, mas eu nessa altura não sabia que viria 1994 e portanto mantinha-me fiel à primeira imagem: os olhos aquilinos rodavam e rodopiavam entre ruas e cheiros, provavelmente atraídos pelos odores e sons que, de lá do lugar dos homens, chegavam com fumo e fartas fomes. 

Era para mim estranho que aquilo não fosse o Estádio da Luz, visto que, ao entrar, o benfiquismo era o mesmo e em doses peculiares - havia quem jogasse bilhar com o cachecol vestido; camisolas da adidas postas nas paredes; gente bebendo cerveja e uísques gritando Benfica. Os sócios tinham um ar compenetrado de associativismo sério e responsável: só bebiam até cair; vomitar não, que era de paneleiragem - assumi desde novo que a paneleiragem fosse o Sporting, mas depois percebi que se referiam a umas drag-queen que eles viam da varanda em noites em que a emoção do jogo era tanta que o piso vermelho da mesa de bilhar se rasgava na diagonal, mirrando perante os olhares atentos dos atletas. Quando era assim, desta forma, sem solução aparente, alguém podia gritar "VIVÓ BENFICA!", que as almas se enchiam de um brio orgulhoso e esqueciam de que amanhã era dia de ir ver dos panos da mesa. 

Fumavam muito, os consócios, enchiam os pulmões de fumo e soltavam pelo ar pequenos símbolos do Benfica que iam voando por cima dos matraquilhos até esbararrarem, menos nítidos, nas fotos do Rogério Pipi ou do Santana ou do Bermudes. As fotos pregadas na parede mas sem serem fixas - acontecia-me beber o meu Trina de Laranja e, já alcoolizado, ver um jogo de cabeçadas entre os atletas da parede junto à varanda e dos jogadores que ficavam de cara a preto e branco junto ao bar. O meu Pai ia ali como se fosse a uma igreja, ia despedir-se ao mesmo tempo que ia matar a sede da alma: chegávamos e pedíamos bebidas, mostrava-me as fotografias na parede, apontava para os troféus, dizia coisas de que não me lembro mas eram parecidas, tenho a certeza que eram parecidas, com uma reza e depois jogávamos com os benfiquistas enquanto o pano não rasgava naquelas noites - dias? - em que drag-queens ou então mulheres às compras iam para ali para a vida dos humanos. 

Eu ia à varanda tentar tocar no símbolo. O meu Pai punha-me ao colo e deixava-me tocar no símbolo. Bastava um toque com o dedo mindinho para sentir o Benfica nas suas profundezas de clube de afectos. A noite caía sobre Lisboa e as luzes acendiam-se avisando o mundo de que era necessária visão, os humanos preenchiam as ruas, falando e gesticulando como humanos, sem saberem a alegria de ficar junto à águia, compondo-lhe as patas sobre o cachecol que anuncia "De todos, um", mesmo que a águia estivesse a voar por cima de nós, irrepetível no voo. O meu Pai dizia-me "isto é o Benfica" e é possível que na emoção da infância eu tenha deixado cair uma lágrima paneleira sobre os paneleiros que passavam na rua - do Sporting ou não. 

Hoje deixo lágrimas paneleiras sempre que ali vou encher o bandulho à Casa do Alentejo ou ver um concerto ou beber ginja ou outra coisa qualquer como ficar deitado numa rua à espera dos humanos - experimentem, é bom, ninguém quer saber. Com uma morcela nos beiços e três litros de vinho depois, então, é dramático. O Benfica está ali mas já não está ali - a minha mãe regozija-se neste momento. Aquilo é um lugar de peregrinação transformado em ninho de ratos e ruínas de um Benfica que um dia existiu. Se não for pedir muito, quero voltar a tocar no símbolo e estragar com o meu puto o pano vermelho da mesa de bilhar.



5 comentários:

Vai ao Estádio, larga a internet.