Foi sempre difícil olharmo-nos olhos nos olhos durante aqueles anos. Claro que havia amor e ternura e cumplicidade entre mim e o meu Pai, claro que a vida continuava para lá daquilo que não dizíamos mas aquilo, aqueles anos, foram sempre novas mortes sobre nós. O meu Pai sentia a culpa de ter-me levado sem aviso para um Benfica apaixonante e eterno; eu pedia, sem dizer, desculpa do que o Benfica se tinha tornado.
Era quase um confronto de gerações nuns 400 jogos estafetas: ele tinha-me deixado na liderança com o testemunho num ângulo certo e eu - ou o Benfica que também era eu - num passo desconexo, a falhar a chamada e a tropeçar - ou o Benfica por mim - na pista.
"Vai e mantém-nos no rumo grandioso", pareceu dizer quando, a cada jogo que me levava a ver a Catedral, eu não me dominava no amor por este clube que é tanta coisa e tão grande ao mesmo tempo e nos olhos dele brilhavam as chamas de uma esperança de eternidade. "Faz-nos maiores ainda, tens aqui a tua herança". E abraçámo-nos nos golos do Rui Águas contra o Steaua, beijámo-nos contra o Elvas, amámo-nos na mão do Vata, fui ao colo dele em Benfica Diving contra o Sporting e olhei-o com respeito, admiração e amor nos outros jogos todos que vimos juntos. O cheiro do benfiquismo do meu Pai acalmava-me os nervos ao mesmo tempo que me transbordava de emoção: era um lugar de conforto e êxtase. De vida.
É natural que tenhamos sentido remorsos e tristeza não um do outro mas do Benfica naqueles 11 anos que passaram entre estarmos numa tarde gloriosa na Luz a guardar pedaços de relva e a dar beijos ao Toni e a ver gente em cima das balizas a agradecer aos deuses e aquela tarde no Bessa, em 2005. Foram dias e semanas e anos em que eu e o meu Pai continuávamos a ir ao Estádio com esperança mas com o coração mais pequeno e frágil: como quando vamos ao velório um do outro; nunca sabemos a razão de alguma coisa ou pessoa ter morrido dentro de nós. Só temos pena e choramos.
Não sei dizer, portanto, a verdadeira loucura que se passou naquela casa quando vimos o Simão marcar o penálti contra o Boavista. Houve planetas desalinhados, vidas trocadas, pesadelos metamorfoseados em sonhos, coisas estranhas, copos no chão, gente aos gritos, cães em sobressalto, amor sincero e outro reinventado. Houve Benfica. As plantas do pátio cresceram mais rápidas e velozes, o horizonte de serras abriu-se em estátuas de sorrisos e bandeiras, o Tejo correu com mais água, os carros de repente tornaram-se buzinas com gente dentro e o povo saiu à rua dentro de nós. Abraçámo-nos num abraço tão grande que os Josés Águas e Eusébios e Colunas e Torres e Cavens e Josés Augustos e Simões e Costas Pereiras e Cruzes e Germanos e Artures Santos e Humbertos e Tonis e Nenés e Joões Alves e Vítores Baptistas e Vítores Martins e Bentos e Shéus e Josés Henriques e Álvaros e Bastos Lopes e Chalanas dele fluíram para dentro dos meus Paneiras e Isaías e Joões Pintos e Velosos e Valdos e Ruis Costas e Magnussons e Therns e Vatas e Césares Britos e Kulkovs e Mozers e Silvinos e Ricardos Gomes e Aldaires e Stefans e tornaram-se - todos e ao mesmo tempo - um corpo inteiro sem distinção nem diferença: um abraço que juntou todos os jogos que vimos, todos os golos festejados, todos os quilómetros que fizemos em busca do Benfica.
A 10 minutos do fim do jogo no Bessa, eu estava sentado sem unhas para roer e garrafas de cerveja na frente que ia colocando em diagonal, depois em quadrado, no fim em pirâmide, e o meu Pai dançava com a minha irmã pela sala numa dança sem possível definição - eram uns passos estranhos de uma felicidade insuspeita, abraçavam-se, dançavam, beijavam-se, amavam-se e os jogadores do Benfica iam fazendo coisas no relvado que nós não víamos porque não podíamos ver nem perceber, só queríamos o Álvaro dentro de campo de cuecas ou o Trapattoni virado para o céu. Mas aquele tempo, aqueles 7 minutos que faltavam agora, tanta coisa que podia correr mal, um asteróide cair e estragar a festa, um colectivo apagar das estrelas todas, o árbitro inventar 50000 penalites, foderem-nos o golo, matarem-nos a dança, acabarem-nos com o sonho.
Quando o jogo acabou, eu não sei onde estava exactamente, se na carpete da sala num abraço colectivo ou se em cima da mesa aos pontapés às garrafas a atirar golos para dentro da lareira; está tudo nublado à espera de razões que não vêm. Sei que olhei o meu Pai na confusão dos sentidos e voltámos a segurar o mesmo testemunho.
Eu nesse dia a essa hora do jogo com o Boavista, estava com a minha mulher e os meus filhos num passeio de sonho nas Cataratas de Niagara, Canadá. De rádio na mão a ouvir o relato, e a olhar para o esplendor das cataratas e a gritar somos campeões, viva ao Benfica.
ResponderEliminarLembro-me de na 2ª-feira ir para a escola e no intervalo, onde era costume colocarem música, porem a tocar o "Sou Benfica" e toda a gente com os cachecóis e um rapaz com uma bandeira do Benfica a balançar. Alegria genuína em todos nós jovens que víamos, a maior parte pela 1ª vez, o nosso Benfica ser campeão.
ResponderEliminarBtw, o teu texto está sublime.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarEu tive o privilégio de estar no Bessa, e tudo o que se diga é pouco. Quando a 5 minutos do fim aparece a faixa "Habemus Campione" o êxtase foi tal que nem me lembro bem do que se passou até voltar a entrar na camioneta de volta a Lisboa.
ResponderEliminarFoi o melhor dia da minha vida.
Sublime texto, puro benfiquismo!!!
ResponderEliminarEu estive lá, memorável, um título na minha cidade, pena ter sido no estádio ao lado. Nesse dia o Bessa foi vermelho e o resto da cidade também.
ResponderEliminarE o Jorge Ribeiro, jogador do Boavista contratado uns dias antes pelo SLB falhou um penalty, pormenorzito sem importância
ResponderEliminarFalhou um penalty, marcou um auto-golo e ainda foi expulso. Não sem antes ter cometido o próprio penalty a favor do Benfica. Foi um dia infeliz, o do Jorge.
ResponderEliminarDigo e Repito,nunca na vida vi nem vivi..e porventura nao irei ver "talvez se ganharmos a Liga dos Campeoes,""talvez""" o que senti e vivi nesse dia,Nao vou repetir aqui a minha historia,mas nunca na vida vi uma festa tao grande como aquela,eu vivo ali no Norte,zona de Santa Maria da feira e o percurso de minha casa a espinho por norma demora 5 minutos,Nesse dia demorei mais de 1 hora e nem conseguimos passar da linha de comboio pra baixo,os carros simplesmente se deixaram ficar em becos e estacionaods na via publica,a Cidade Fechou! Fechou mesmo! No Percurso para la..lembro me de ir pelo caminho ver familias inteiras a pe,ate com panelas nas mãos,cada rotunda era uma multidao,as estradas cheias de gente....enfim eu nao tenho sequer palavras para descrever ainda por cima se se recordarem,estava um dia bastante quente nesse dia....A festa do titulo de 2010 apesar de ter ficado registado aquele momento no Marques e tal..para mim,para mim nao teve sequer ponta de comparação! E`que nao teve mesmo!
ResponderEliminarEu estava naquela bancada. No segundo Piso. Eu estava memso por detrás da baliza, mesmo na sua direcção. De um lado os DV, do outro os NN. E naquele dia eramos um só, BENFICA. Deveria ser sempre assim.
ResponderEliminarSaudades
Quanto ao resto, abstenho-me. Mas, na parte da vida dedicada ao benfiquismo, o teu Pai deve ter imenso orgulho naquilo que te transmitiu e no benfiquista que te tornaste.
ResponderEliminarAbraço!
essas fotos sao em tamanho pequeno,na altura devem ter sido tiradas com umas cameras de um nokia 6630 ou caralho,ainda ninguem arranjou maneira nem tempo de as formatar
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