Eram exactamente 15:21 quando Lúcio Caparinha acordou no terreiro central de Borba. A poeira circulava pelo ar vinda de vários ângulos, corria as árvores, levantava-se sobre os carros esquecidos e alimentava-lhe os lábios de uma cor e sabor a terra. Parecia morto, Lúcio, entregue a uma sombra que, por sorte, se mantinha sobre a sua cabeça. Era uma imagem de fim do mundo aquela que Lúcio viu quando finalmente abriu os olhos: um céu azul-mágoa, nuvens construindo formas estranhas - umas parecendo aviões, outras semelhantes a bolas disformes que apetece rematar para golo. Os braços abertos, fazendo ponteiros no chão, as pernas juntas como se, por defesa, Lúcio tivesse adormecido com medo do futuro. Caíam da árvore longas folhas de Outono, algumas esquecidas no corpo, outras voando e esvoaçando e voando e esvoaçando a cortar a visão do céu. Dez segundos depois de ter aberto os olhos, Lúcio percebeu: estava bêbado.
Levantou-se devagarinho para não assustar os pássaros. O corpo subia entre a horizontal do sono e a vertical da vida. Diagonal, Lúcio cambaleou, numas vezes caiu e noutras pôs-se de pé. Olhou a paisagem: tudo era Sol, Sul, cal e dores no pescoço. Tinha o pensamento debaixo de água, submerso na realidade. Afastou a terra da ganga com um gesto repentino, ajeitou o cabelo, pôs os dedos aos lábios para limpar o pó da noite e riu-se. Não havia propriamente uma razão para rir, apenas o mundo e pessoas ao fundo.
Lembrou-se de excertos de memórias da noite anterior, acendeu um cigarro e voltou a rir-se. Farto de luz, Lúcio foi sentar o corpo macerado junto ao tronco de uma árvore, para fumar direito e pensar - era preciso organizar as ideias. Relembrou, no que era possível, os passos dados do dia anterior até ter acabado ali deitado, no terreiro onde há largadas de touros, mercado e circo, dependendo das épocas de festividade. Viu uma orelha de uma vaca no chão, dois narizes de palhaço e o que parecia ser um pedaço de pano provavelmente ali largado depois de uma guerra de regateios e mãos e braços que acabaram por levar a camisola desinteira.
Com a cabeça aos solavancos e o corpo em jeito desintegrado, o coração aos pulos por dentro e uns pulmões em sprints de cansaço, Lúcio Caparinha achou que tinha de beber. Olhou o território, estudou as directrizes, reflectiu. Em frente, o "Botequim", bar antigo que àquela hora já recebia imberbes estudantes à procura da absolvição de desamores inventados ou reais, borbulhas e processos socio-imaginativos. Cumpriu o ritual: levou-se até um uísque, devagar para não levantar suspeitas e falsas acusações. Todos os 120 metros que Lúcio percorreu foram de prestidigitação: fazia que se preocupava com um joelho, parava a fingir que via mensagens no telemóvel, interessava-se por flores inexistentes. A custo, chegou à estrada, caminhou sobre a passadeira como se fosse uma ponte para o inferno, viu o toldo do bar, baixou os olhos e entrou pela porta com um olhar de vergonha e a vontade de beber para voltar a estar bêbado.
Pediu uma imperial. Não sabemos a razão da escolha, podemos apenas imaginar que Lúcio não terá sentido que o momento era de absolvição definitiva de um uísque que o levasse, assim tão de repente, para o outro lugar da vida. Sentou-se no balcão, à espera de uma conversa. Ficou a olhar a prateleira de bebidas, posters e estranhos bonecos que anunciavam um bar dedicado à decoração festiva. Riu-se para dentro, com conclusões definitivas que retirou das pessoas que observava.
Depois achou que não devia concluir tão definitivamente sobre as pessoas e essa conclusão, ainda não sabemos porquê, levou-o a memória de infância, coisas de que se recordava de há anos atrás, de dívidas, momentos - todos os tempos reflectidos na língua, onde saboreava cevada aguada e viagens no tempo. Pediu o "A BOLA " ao dono, por estar farto de ideias, e viu que o Benfica estava quase a entrar em campo. O cérebro em câmara-lenta orientou-o: vais até Vila Viçosa ver o jogo. A informação chegou-lhe ao nariz sem formas, quase parecendo uma farsa, mas abraçou-a como se disso dependesse a vida. Vou a Vila Viçosa ver o Benfica, está decidido.
Sabemos como é frágil um coração bêbado - até a ideia mais absurda ganha laivos de inevitabilidade se os elementos se encontrarem todos astralmente sintonizados. Foi assim que Lúcio, após um uísque (doping de caminhada), decidiu abrir-se para a estrada. Foi devagar porque o Sol não tinha pressa e as pedras do caminho surpreendentemente mantinham coerência, estáticas e etenas no vento da caminhada. Bi-bêbado, Lúcio admirou-se com o Sol. Passavam os anos, quase todos trágicos, e a mesma incredulidade ao Sol e à luz quente que o queimava, beijando-o. Naquele caminho surreal, entre Borba e Vila Viçosa, no meio de montes de mármore, fantásticas máquinas e poeira, o que se mantinha e elevava o coração de Lúcio era aquele Sol que aconchegava as coisas: almofada de luz sobre o mundo. Avançava sobre as pedras e as passagens de carros com a tranquilidade de um cérebro em diagonais pelo mundo. Ria-se, ria-se muito, ria-se tudo.
Lembrava-se das coisas mais absurdas, fazia pequenos jogos cerebrais consigo próprio, rememorava-se todo. Enquanto os pés seguiam, passo a passo, Caparinha lembrava-se de amigos antigos, de outros novos, de gente que estava em fotografias nas salas das casas dos outros, nas salas da sua própria casa. Quem era aquela gente, que vivia com dentes e sorrisos e cabelos e gestos felizes num álbum deixado dentro de um armário carcomido por lesmas e traças? Seriam capazes de percorrer Borba-Vila Viçosa numa absolvição de oliveiras e cheiro a coentros?
Estraçalhado, Lúcio Caparinha viu o Palácio à direita. Surpreende sempre o seu coração sensível. Mas os tempos eram de fuga e estava quase na hora de ver o Benfica. Percorreu a Florbela Espanca à procura do sítio perfeito: restaurantes cheios de gente, bares desertos à procura dos primeiros bêbedos, cafés já sem café, grupos recreativos com velhos a jogar às cartas. Nada disto agradou ao nosso protagonista. Num repente anti-social, decidiu ir fazer arroz para casa e ouvir os relatos dos golos do Benfica encostado à janela a descobrir novos talentos.
Levantou-se devagarinho para não assustar os pássaros. O corpo subia entre a horizontal do sono e a vertical da vida. Diagonal, Lúcio cambaleou, numas vezes caiu e noutras pôs-se de pé. Olhou a paisagem: tudo era Sol, Sul, cal e dores no pescoço. Tinha o pensamento debaixo de água, submerso na realidade. Afastou a terra da ganga com um gesto repentino, ajeitou o cabelo, pôs os dedos aos lábios para limpar o pó da noite e riu-se. Não havia propriamente uma razão para rir, apenas o mundo e pessoas ao fundo.
Lembrou-se de excertos de memórias da noite anterior, acendeu um cigarro e voltou a rir-se. Farto de luz, Lúcio foi sentar o corpo macerado junto ao tronco de uma árvore, para fumar direito e pensar - era preciso organizar as ideias. Relembrou, no que era possível, os passos dados do dia anterior até ter acabado ali deitado, no terreiro onde há largadas de touros, mercado e circo, dependendo das épocas de festividade. Viu uma orelha de uma vaca no chão, dois narizes de palhaço e o que parecia ser um pedaço de pano provavelmente ali largado depois de uma guerra de regateios e mãos e braços que acabaram por levar a camisola desinteira.
Com a cabeça aos solavancos e o corpo em jeito desintegrado, o coração aos pulos por dentro e uns pulmões em sprints de cansaço, Lúcio Caparinha achou que tinha de beber. Olhou o território, estudou as directrizes, reflectiu. Em frente, o "Botequim", bar antigo que àquela hora já recebia imberbes estudantes à procura da absolvição de desamores inventados ou reais, borbulhas e processos socio-imaginativos. Cumpriu o ritual: levou-se até um uísque, devagar para não levantar suspeitas e falsas acusações. Todos os 120 metros que Lúcio percorreu foram de prestidigitação: fazia que se preocupava com um joelho, parava a fingir que via mensagens no telemóvel, interessava-se por flores inexistentes. A custo, chegou à estrada, caminhou sobre a passadeira como se fosse uma ponte para o inferno, viu o toldo do bar, baixou os olhos e entrou pela porta com um olhar de vergonha e a vontade de beber para voltar a estar bêbado.
Pediu uma imperial. Não sabemos a razão da escolha, podemos apenas imaginar que Lúcio não terá sentido que o momento era de absolvição definitiva de um uísque que o levasse, assim tão de repente, para o outro lugar da vida. Sentou-se no balcão, à espera de uma conversa. Ficou a olhar a prateleira de bebidas, posters e estranhos bonecos que anunciavam um bar dedicado à decoração festiva. Riu-se para dentro, com conclusões definitivas que retirou das pessoas que observava.
Depois achou que não devia concluir tão definitivamente sobre as pessoas e essa conclusão, ainda não sabemos porquê, levou-o a memória de infância, coisas de que se recordava de há anos atrás, de dívidas, momentos - todos os tempos reflectidos na língua, onde saboreava cevada aguada e viagens no tempo. Pediu o "A BOLA " ao dono, por estar farto de ideias, e viu que o Benfica estava quase a entrar em campo. O cérebro em câmara-lenta orientou-o: vais até Vila Viçosa ver o jogo. A informação chegou-lhe ao nariz sem formas, quase parecendo uma farsa, mas abraçou-a como se disso dependesse a vida. Vou a Vila Viçosa ver o Benfica, está decidido.
Sabemos como é frágil um coração bêbado - até a ideia mais absurda ganha laivos de inevitabilidade se os elementos se encontrarem todos astralmente sintonizados. Foi assim que Lúcio, após um uísque (doping de caminhada), decidiu abrir-se para a estrada. Foi devagar porque o Sol não tinha pressa e as pedras do caminho surpreendentemente mantinham coerência, estáticas e etenas no vento da caminhada. Bi-bêbado, Lúcio admirou-se com o Sol. Passavam os anos, quase todos trágicos, e a mesma incredulidade ao Sol e à luz quente que o queimava, beijando-o. Naquele caminho surreal, entre Borba e Vila Viçosa, no meio de montes de mármore, fantásticas máquinas e poeira, o que se mantinha e elevava o coração de Lúcio era aquele Sol que aconchegava as coisas: almofada de luz sobre o mundo. Avançava sobre as pedras e as passagens de carros com a tranquilidade de um cérebro em diagonais pelo mundo. Ria-se, ria-se muito, ria-se tudo.
Lembrava-se das coisas mais absurdas, fazia pequenos jogos cerebrais consigo próprio, rememorava-se todo. Enquanto os pés seguiam, passo a passo, Caparinha lembrava-se de amigos antigos, de outros novos, de gente que estava em fotografias nas salas das casas dos outros, nas salas da sua própria casa. Quem era aquela gente, que vivia com dentes e sorrisos e cabelos e gestos felizes num álbum deixado dentro de um armário carcomido por lesmas e traças? Seriam capazes de percorrer Borba-Vila Viçosa numa absolvição de oliveiras e cheiro a coentros?
Estraçalhado, Lúcio Caparinha viu o Palácio à direita. Surpreende sempre o seu coração sensível. Mas os tempos eram de fuga e estava quase na hora de ver o Benfica. Percorreu a Florbela Espanca à procura do sítio perfeito: restaurantes cheios de gente, bares desertos à procura dos primeiros bêbedos, cafés já sem café, grupos recreativos com velhos a jogar às cartas. Nada disto agradou ao nosso protagonista. Num repente anti-social, decidiu ir fazer arroz para casa e ouvir os relatos dos golos do Benfica encostado à janela a descobrir novos talentos.
eu e tu ate temos o mesmo apelido,silveirinha,de certeza que nao es ca da minha terra?
ResponderEliminarQual é a tua terra, Rui?
ResponderEliminarGosto do teu estilo
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