Dorme sem monarquias atrelado a um colchão de campista que roubou uma vez em Montegordo, enquanto os campistas nadavam ondas. Não sei que viagem trouxe até aqui à Ajuda, onde diariamente encosta a cabeça numas ruínas de palacete requebrado pelo tempo e pelas misérias, abrindo da rua para a invenção de entrada um buraco tão grande quanto a esfera de corpos sem demasiadas calorias. Ao lado do túnel uma palavra: "Inferno", a letras que espantam os que têm medo e chamam os que chegam com fome.
Inferno. Todos os dias o mesmo inferno. O frio encharcado no corpo, três luas em cima (o que é que interessam as luas?), uma manta que faz de filtro à chuva sobre o corpo demasiado lateral, a vida tão morte tão vida normalizada num olhar sem dias nem meses nem anos. Podem as estrelas aquecer este corpo num céu demasiado longe para aquecer de memórias os cabelos estilhaçados que reflectem sonhos e, ainda mais, pesadelos?
Encontro-me com o Carlos no café, num dia de semi-sol. Há quente e há bagaço nas nossas pernas. Junta-nos o Benfica, nada mais. Somos de planetas diferentes, viemos de bebidas distantes, comemos outras coisas, amámos e desamámos o mesmo. Estranho, este olhar que nos persegue feito estendal entre os dois, com peças de melancolia estendidas na distância entre nós. Levo um cachecol vermelho ao peito, com uma imagem de um homem de bigode e em baixo: "1904". Carlos reconhece a simbologia, primeiro de longe, como uma verdade universal que não tem necessidade de gestos nem vozes; depois, mais perto, chegando-se na vontade de um abraço de golo ainda que não existissem golos naquela tarde. Abraça-me. Diz-me: "tu és do Benfica", e eu podendo dizer tanta coisa, tanto silêncio que era possível fechar naquela frase, só soube olhá-lo de frente, puxar uma passa atrás, fumegá-la e dizer, com todos os vários orgulhos que o mundo ainda pode oferecer: "Sim, sou do Benfica e do Cosme".
O Carlos, além de benfiquista, é amigo do neto do Marceneiro. Apresentou-mo. Ficámos três ou quatro meses - que, afinal, foram três ou quatro horas - a conversar com o coração solto de impurezas sobre o Benfica, o Mestre Alfredo e sobre todas as outras coisas que aqui, dentro deste texto construído para um blogue sobre coisas que hão-de ser ditas, não hão-de ser ditas. Comem-se uns pedaços de paio, vem queijo para a mesa, o pão é de ontem e por isso é melhor, as verdades confundem-se com as bagaceiras que vêm dentro de copos pequenos e finos, em lantejoulas, a aliviar a tarde-noite. É possível que nunca tenhamos sido tão felizes.
Quando chega a hora de jantar, o Marceneiro despede-se cantando. Vai pela rua de costas, com pena e medo de deixar a felicidade, deixando no espaço e no ar das pequeninas partículas da humanidade coisas belas e perenes. Ri-se com uma barba monstruosa, igual às nossas, uns olhos que contêm vidas dentro de vidas dentro de mortes dentro de vidas. O Carlos aguça o olhar, lembra o fundamental: "o Marceneiro é porreiro, mas é Belém". Eu construo-me, reconstruo-me, fundo-me e fundamento-me (outra vez!) lisboeta, não sei se demasiado nostálgico se notavelmente endiabrado: "Eu, além do Benfica, se puder escolher, como uma noiva numa primavera árabe, escolho o Belenenses". Provavelmente coisas de antepassados, uma genealogia de gostos e verdades, se calhar mentiras, de que não podemos fugir quando nos confrontamos com a memória feita construção de acasos e afectos. Sim, podia ser do Belenenses, se não fosse do Benfica. Podia ser do Belenenses.
A chuva continua a correr em queda livre. É diferente sabermos que temos camas à espera e tectos e casas-de-banho e frigoríficos cheios de coisas para comer no final da noite. Decido ir dormir ao refúgio do Carlos. Um manto notável de céu e estrelas e asteróides e meteoritos e planetas que não valem nada quando a chuva ensopa os ossos e as mantas e coisas que nunca aparecem nos telejornais senão no Natal. Dormimos sem dormir, recheados de álcool e a timidez do Carlos em fazer-me de hóspede e o meu medo em fazer-me de imbecil. Salvaram-nos os jogadores do Benfica, as opções do mister Jesus e aquele jogador que provavelmente devia ter corrido mais por respeito aos adeptos.
Pumba, mais nostalgiazinha...
ResponderEliminarTão bom..
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