O
excesso de informação causa-me urticária. O acesso fácil, imediato,
espertalhão à realidade. Ainda está um gajo a chamar todos os nomes ao
árbitro por um lance suspeitíssimo na área adversária e logo alguém saca
do coldre um telemóvel ultra-moderno e avisa os animais: "não foi
penálti". Onde fica o direito à indignação se somos confrontados assim,
sem pudores nem lugar ao imaginário, com a cruel verdade dos factos?
Permitam-nos a dúvida, o desespero, o sentimento de injustiça. Deixem as
gerações sonhar e guardem no bolso as últimas gerações de tecnologia.
Há
muitos, demasiados, anos costumava passar férias no Sul de Espanha. O
dia mais ansiado ficava guardado para o momento em que comprávamos o
jornal na esperança de ter notícias do Benfica. Era o dia em que saíam
listas intermináveis, que ocupavam duas páginas inteiras, com o sorteio
das competições europeias. A infomação, no entanto, já existia há 24
horas. Em Portugal já se sabia que o Benfica tinha calhado com uma
equipa húngara há um dia inteirinho. E nós, ali tão longe, quase no
deserto andaluz, tão distantes de sabermos.
E então
levávamos o jornal para a praia, assentávamos praça, tirávamos as
t-shirts, abríamos cadeiras, estacávamos o guarda-sol na areia escura e
quente do verão mediterrânico e, com um gesto quase divino-celestial,
devagarinho percorríamos as páginas em busca da informação desejada.
Púnhamos os dedos na horizontal para tapar os emparelhamentos das linhas
inferiores e com muita cerimónia perscrutávamos as equipas. Não raras
vezes o Benfica aparecia só no final da segunda página, o que nos dava o
conhecimento científico de todos os Malmoe-FC Dnipro, Servette-Honved,
Cork City-Brann e demais 3412 pares de equipas.
Ainda
hoje penso na razão pela qual aquilo era tão importante, visto que, do
ponto de vista das probabilidades, era raríssimo apanharmos logo equipas de
grande nível. Mas havia ali não só o benfiquismo preocupado e honesto
mas o gosto pelo secreto. O facto de Portugal inteiro conhecer algo
sobre o Benfica que nós desconhecíamos causava-nos alguma dor,
provavelmente alguma saudade, mas também uma leve sensação de distância
que nos alegrava - estar de férias também era isso, não ver portugueses,
ficar longe de portugueses, amá-los e detestá-los do lado de fora.
Quando
chegávamos ao nome Benfica, o meu Pai sorria, tranquilo. Eu
olhava-o a tentar entender se aquele nome estranho que tinha aparecido
em frente ao nome do nosso clube era bom para as nossas aspirações.
"Está no papo" e o meu coração benfiquista descansava-se.
Hoje
como seria? Estaríamos com um telemóvel na praia a seguir em directo o
sorteio da UEFA? Os grãos de areia nas entretelas das teclas e aquele
facilitismo das coisas directas e tão pouco misteriosas. Faríamos um
esgar de enfado - afinal seria tão simples - e nem sequer conheceríamos
os nomes de todas as equipas irlandesas, norueguesas ou húngaras de trás
para a frente. E o que o futebol me deu de geografia.
Por mim,
mantenho-me fiel ao meu Nokia que não tira fotografias, não faz filmes,
não tem acesso à internet e não pode ser sacado do coldre feito pistola
para o assassinato da dúvida. No máximo, uma mensagem de algum amigo
pouco íntimo com a minha vontade de mistério a estragar-me os planos. E
como sabe bem passar meia-hora a resmungar um penálti evidente no estádio que afinal, horas depois visto em casa, não passou de um mergulho para a piscina. Permitam-nos
esse direito inalienável a sermos tão humanamente injustos.
Transistor?
ResponderEliminarMais nostalgiazinha. (bocejo)
ResponderEliminarSempre podes usar o Nokia para por uns pontos na cabeça do árbitro.
ResponderEliminarNa mesma porproção dos pontos que somos roubados....para haver justiça
repost? É que já li este texto algures...:)
ResponderEliminarcumps
Sim, Jaime, plagiei-me. Abraço.
ResponderEliminarVim agora ao blog pela 1a vez. Artigo espectacular de um grande Benfiquista. Agora li mais uns artigos, um dos quais falava de um tal "sonhador ébrio".
ResponderEliminarO tristemente engraçado é que não o era, até decidir salvar o nosso clube. Sempre quis acreditar que os Benfiquistas verdadeiros tivessem noção do que ele passou e que, apesar dos seus erros, lhe estivessem agradecidos para todo o sempre.
Enganei-me. Tens agora o presidente que mereces. E eu? Levo com o presidente que tu mereces mas morrerei com o orgulho de ser filho do "sonhador ébrio" que, por ter existido, fez com que pudesses escrever neste blog.
Saudações Benfiquistas.
Gonçalo Vilarinho
Gonçalo, eu não mereço de certeza a merda que tenho como Presidente. Passo os meus dias a tentar livrar o Benfica desta lama. De qualquer forma, ser "sonhador ébrio" é uma coisa boa - reconheço-me muito nisso. E, olha, foi o teu Pai quem pôs este cancro no Benfica. Abraço.
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