É-me estranho ler sobre o mundo anterior a 1904. As pessoas que existiram,
os livros que escreveram, as brigas que tiveram, os quadros que pintaram, as músicas
que inventaram, os dias sob o Sol de costas arqueadas, as cartas profundas que
- a pena, a giz, a sangue - escreveram, os amores que sentiram, as fomes, as
tristezas, as guerras, os desvarios. Que espécie de humanidade era aquela, sem
Benfica?
Quando Fernando Pessoa nasceu, os 3 oitos que lhe dão origem não são
contemporâneos do Estádio da Luz. Como pode um homem escrever tamanha obra
celestial sem ter provado as bifanas das barracas de madeira, ter abraçado
desconhecidos sob a chuva, chorado desalmadamente uma derrota, envergado cachecóis
e mantos sagrados, ter acalmado desamores na ternura do voo da águia, ter desistido
de amigos por questões de paixão, ter vibrado e sonhado com golos do Benfica? Enquanto
escrevia, numa alucinação de sentires e pesares, Pessoa nunca teve aquele
conforto de alma de saber-se benfiquista.
Isto não está correcto, não pode ser verdade, há milagres escondidos na
dimensão do mundo. Como Deus e outras patranhas similares, a invenção de que o
Benfica nasceu em 1904 advém de uma necessária ilusão para que as notas toquem
todas ao mesmo tempo e façam sentido. O Benfica não nasceu em 1904, o Benfica já
existia muito antes de haver escritas e livros e pinturas e noções básicas de
civilização. O Benfica nasceu no primeiro ser humano que surgiu na Terra. Quando
um peixe, estafado de água e algas, se decidiu a caminhar, aos soluços, pela
imensidão das veredas e coqueiros de uma ilha, meio grogue, já o Benfica o
esperava nos areais da humanidade. Ainda não havia propriamente mundo nem
humanos e já havia Benfica. O peixe criou patas, depois coluna vertebral, olhos
e cabelos, noções de pele, medos, certezas, derivações de coragem, tudo isto
enquanto o Benfica o alimentava de amor e daquilo que ele precisava para criar,
não sem hesitações e despautérios, aquilo a que mais tarde se chamaria: o
mundo.
Quando a corte portuguesa chegou ao Brasil em 1808 (dois oitos, menos um
que o do Pessoa), já D. João cantava loas ao benfiquismo, envergando no peito
uma declaração de liberdade e independência: “Crio este país como forma de
potenciar jogadores para uma realidade que, apesar de distante no tempo, criará
grande discussão no seio do reino de Portugal e do Benfica”. Embarcado em fuga,
D. João já inovava pela clarividência de raciocínio e premeditação, fomentando
prospectores de talentos e novas abordagens aos mercados mundiais. D. João era
naturalmente benfiquista, pleno de criatividade, talento e ilusão, alheado dos
factores universais das valorizações de activos. Criou o Brasil só para
potenciar Jorge Gomes e os demais que se lhe seguiram, como Mozer, Aldair,
Ricardo Gomes e, o expoente máximo da epopeia, Valdo Cândido de Oliveira Filho -
o golpe transcendental em D.
Miguel e nos seus anafados absolutistas.
O que fez história e ficou na posteridade – admiremos Júlio Cosme Damião por
isso – foi ter o nosso “fundador” encontrado, na Praia da Adraga, um notável
manuscrito de D. João no qual este versava sobre a fundamental importância de
criar em Portugal um clube que desse corpo à ideia universal e benfiquismo. Escusamo-nos
a revelar todo o conteúdo do maravilhoso documento, chega-nos a ideia que Júlio
Cosme absorveu, criou e recriou à sua imagem – homem de dignidade admirável -,
fazendo do Sport Lisboa e Benfica aquilo que ele é, apesar dos apesares, hoje. O
que nunca ficou escrito, e é pena, é o facto de D. João, também ele, ter
encontrado na praia cartas dos antepassados benfiquistas. Em resumo: uma sequência
peculiar de descobrimentos de garrafas nas quais a História do Benfica é
contada desde os tempos primeiros em que nem sequer havia giz, sangue, penas ou
vidros. Um mistério que ainda está por ser descoberto, provavelmente advindo de
relações internacionais com extraterrestres.
Festejemos, no entanto, o último dos humanos: Júlio Cosme Damião, o autor
da proeza genial, e rara, de dar vida a um sentimento que percorre milénios de
humanidade e existência. Naquela reunião na Farmácia Franco, Cosme nunca falou
do Cosmos, limitou-se, bem, a inventar o Benfica. Agradeçamos, em devida vénia,
respeito e amor, ao nosso ilustre bigodudo por isso. Não esquecendo, agora que conhecemos
a verdade dos factos, que o Benfica nasceu do mar. E antes dos astros. O
Benfica é o Big Bang.
E é isto. E é à Benfica. E isto é Tudo.
ResponderEliminarNão sendo este para publicar: o João não criou o Brasil, foi o Pedro. Papá João já estava por cá com a tonta da carlota. E olha que os miguelistas não são os que a história ou ' estória ' pinta. Eram os Portugueses. A agressão do Pedro do Brasil foi a soldo da Quádrupla-Aliança: as tropas estrangeiras e os mercenários liberais, de Napier a Smith. Os Portugueses estavam com o seu rei: D. Miguel. Pequenos reparos, que não são mesmo para elevar a comentário. :-)
ResponderEliminarSão, são, Nuno. Esses reparos são fundamentais para a História. Para este texto, já não. A História e a Ficção, momento sublime.
ResponderEliminarAdorava descobrir qual o clube do Fernando Pessoa, se é que gostava de «football».
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