quinta-feira, 30 de maio de 2013

O meu Valdo Cândido de Oliveira Filho

 Camisola vermelha comprada numa feira, um "1" e um "0" feitos à mão e cosidos pelo meu Pai nas costas, uns calções brancos, curtos, e umas chuteiras simples. Faltou-me a Afro para ser o Valdo. De resto, estava tudo lá: a indumentária e eu, em imaginação. Quando corria, fazia aquele compasso de espera, fintava uma pinha, deixava-a cair, voltava a rodopiar, levantava a cabeça. Um pinheiro pedia-me a bola, isolado. Fingia que passava, metia para dentro, corria, olhos no chão, olhos na bola, olhos em frente. Peito feito sobre o ar vespertino, a bola chegando-me aos joelhos. Pai, posso ser o Valdo? 

 O carro estava estacionado numa clareira, entre o pinhal. Portas abertas, todas, bagageira para cima, com bolos, pão, vinho, rissóis e panos feitos numa máquina Singer que a minha avó rodava nas mãos e nos pés feita malabarista no escuro em frente a uma parede com fotografias de gente muito velha a preto e branco. Jazem aqui flores e nomes e cães iguais aos que há agora mas a cinzento e há tanto tempo mortos. Quantos cães tem uma vida? 

 Há uma voz que ressoa por entre os ramos. Anunciam golos de tarde desportiva, emissões de Portimão a Coimbra, vão para Braga, voltam a Lisboa, dirigem-se a Leiria, ficam em Chaves. Rudez Thiomir marca golo. E os cestos de verga abanam no gooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo de Rudez, golo do Chaves, lance que se iniciou na intermediária, a bola rodou sobre um adversário, avançou pelo miolo, chegou à linha, foi cruzada, um impasse, o mundo todo parado observando o croata, a indecisão, quase remate, remate, bola nas redes. Alguém vem e pergunta: foi golo do Benfica? 

 A minha camisola tem um "1" milimetricamente na diagonal - não se vê a um metro de distância, mas está lá, não foi trabalho de fábrica, houve mão de amador, aquele que ama. Na frente, há pescoço porque há decote em v, o vermelho é um vermelho mais escuro e não se vende no Media Markt, porque o Media Markt não existe e porque há coisas que o Media Markt não pode vender. Mas há um Valdo a correr nos pinheiros. E vários golos porque o golo tanto pode entrar entre árvores como entre pedras - o jogador decide, no calor do momento. A distância entre o Valdo e o carro depende dos gritos que ecoam. Claro que os pés não sabem por que razão avançam para os pastéis de bacalhau quando há grito de golo mas o coração não tem dúvidas: vai à espera do Benfica. É agora? Foi golo do Benfica? 

 E aquele som contínuo, não no "g" que demora pouco, mas no "o" - quantos ós e desesperantes - e toda a gente parada, eu, o meu Pai, as rodas do carro, as folhas, o gesto das febras na grelha, o céu e as nuvens que deixam de construir imagens - tudo parado. É golo, mas de quem? Goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo. E antes do "l" e muito antes do "o" que o continua olhos não no rádio mas uns nos outros, eu olho o meu Pai que me olha a mim que o olho a ele. O "1" cosido nas costas a olhar o "0" cosido nas costas, pedaços de terra saltam e ficam no ar à espera. Diz Benfica, diz Benfica, diz Benfica, o coração aos pulos, diz Benfica, diz Benfica, diz Benfica, as pernas flectidas, joelhos em silêncio, quase dor muita dor, braços à espera, mãos curvas, ouves o som do público? 

 É indefinível, gritam todos e muitos, não sabemos quem nem por quem nem onde. Há som e ruído, imaginamos bandeiras sob o sol, cachecóis no vento, abraços, gente aos gritos, garrafões tombados. Mas é Benfica ou não? E o "oooooooooooooooooooooooooooooooooooo" continua, o homem tem fôlego, não se cala, mantém a surpresa na garganta, a bola junto a uma das rodas do carro, esquecida e adormecida, esperando o movimento. Não há movimento, só um grito que não acaba, e o golo, o golo é de quem? Há uns sons metálicos de assobio enquanto o rádio canta. Ondas de silvos no meio dos óculos da avó que retira pratos e garfos e facas de plástico do interior de um saco. 

O carvão todo junto, negro, colante, uma imagem de um sol sobre a estrada de terra e uma menina que corre, indiferente ao golo, pelos cogumelos e musgo. De quem é o golo? O vestido às rosinhas não sabe, prefere dançar oblíquo sem rota nem bandeira. O golo, que é de alguém, não chama aquela corrida atrás de uma borboleta que faz desenhos no ar e depois desaparece. ... doooooooooooooooooooooooo Beeeeenfiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiica e os meus olhos abraçam os ombros do meu Pai e depois continuam para o espaço atrás dele com os olhos dele para o espaço atrás de mim e os olhos em chama, ombros em chama, a bola é pontapeada contra uma pedra grande que faz ricochete, sobe no ar que o Valdo recebe, com aquele pé de veludo, tenso o tempo suficiente para haver contacto e logo mole, macio, para ela ficar ali aninhada. Os Domingos sabiam tanto a Benfica.

3 comentários:

  1. Foda-se, vai escrever assim pó caralho meu!!!

    Que saudades caraças...

    Parabéns!

    Gonçalo

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  2. Ao glorioso Ricardo e a todos os que leiam, tenham voz e vontade:

    - impressionou me imenso a última frase do teu post, porque, como se calhar à maioria de nós, nos transporta para aquele tempo mítico que é a infância.

    - agora: o Benfica vai voltar a mandar nos seus direitos de transmissão. Para começar, numa época que desejavelmente vamos fazer a competição europeia à quarta (verdade que tb será em algumas terças, mas adiante)

    - não era de valor que voltássemos a ter futebol na luz aos domingos à tarde como era dantes?! não valia a pena fazer chegar esta ideia a quem de direito?

    uma contribuição humilde :)
    abraços
    - Pedro

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Vai ao Estádio, larga a internet.