Nunca mais volto ao Piso 1. Eu, como sou pobre, sou mais da zona Piso 3 mas ontem, porque o Benfica decidiu oferecer-me bilhetes por eu ser um belíssimo exemplar de débito directo, tive privilégios e honrarias. Fui exigente. Piso 1 e não se fala mais nisso. Tanto que passei pela porta 17 com uma garrafa de água cheia de vodka na mão (sem tampa, que o steward zela pelo bem-estar dos espectadores), galguei metros, passei por uma porta envidraçada com letras bonitas a dizer "VIP" e cheguei à... 19. Onde estaria a 18, que era a minha? Julguei estar bêbedo, e estava, e voltei atrás. Não, confirmava-se, antes da 19, só a VIP e antes a 17. Como não sou parvo, embora pareça, juntei os cordelinhos na cabeça e constatei, qual génio, que eu era VIP. As coisas que fazem de nós.
Fui muito bem recebido, vi o José Augusto, vi gente ilustre e sentei-me. A cadeira era aquecida e almofadada, atrás de mim ginásios luxuriantes com vista para o relvado, gente bonita, limpa, asseada, com o cabelo arranjado, o próprio café tinha outro aspecto, as coisas brilhavam mais. Onde estariam os benfiquistas?
Como fui sozinho à bola, não pude compartilhar a experiência esóterica que me estava a acontecer mas pude, por outro lado, observar com mais atenção tudo aquilo: um luxo. E enquanto a vodka ia descendo na garrafa e o Sidnei lembrava-me as saudades do David Luiz, procurava por sinais de benfiquismo. Em vão. Sentados, calados, ensimesmados, engravatados, aqueles adeptos pareciam bonecos postos ali para, qual José de Alvalade, fazerem o efeito "estádio cheio". Cheguei a passar um pionés na nuca do boneco à minha frente e ele saiu em balão "pfiiiiiiiiiiiiiii" pelo ar. As coisas que o Benfica faz à gente. Lá em baixo, o Salvio parecia o Gaitán e o Jara não parecia o Saviola. O Aimar parecia o Menezes e o Coentrão parecia o Coentrão.
No intervalo, experimentei o urinol feérico iluminado da casa-de-banho VIP e assisti a um engravatado lavar as mãos como eu nunca tinha visto. O senhor passava água, depois produto, secava as mãos, voltava a passar água, depois produto, depois secava as mãos. Fez isto três vezes. Findo o processo, ajeitou a gravata, passou a mão brilhantemente asseada pela melena grisalha e saiu pela porta. Eu olhava-me ao espelho, sem saber se devia ir ver a segunda parte ou partir a cabeça contra o vidro. Não estou, é óbvio, habituado a estas coisas.
Onde estaria o magote de gente em fila pirilau atrás dos urinóis; que fizeram deles? Que saudades dos lavatórios sujos e sem espelhos, dos pais agarrados aos filhos à espera atrás de uma porta enquanto, na sanita, benfiquistas se peidam e gritam coisas obscenas e dizem mal do árbitro. Saudades dos sotaques na casa-de-banho, gente do Minho, do Alentejo, "da" França, gente gorda, cara ruborescida do vinho. Até o mijo me soube pior sem aquela pressão adicional de ter de executar rapidamente para dar, democraticamente, lugar a outro. Tudo tão fácil, tão certinho, tão inquietantemente lúcido e civilizado. A custo, voltei ao meu lugar.
Jogo melhorzinho, mais Benfica até que... GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLO! Levanto-me, salto, grito, GOLO, CARALHO!, procuro alguém para abraçar ou, ao menos, olhar daquela forma cúmplice que só o futebol consegue dar entre perfeitos desconhecidos. Mas nada! Num raio de 5 metros, os 30 bonecos sentados batem palmas, com as mãozinhas delicadas umas contra as outras, num gesto de donzelas românticas, e eu a olhá-los e eles a rirem para mim, quase envergonhados. Senti-me o Tom Hulce, no "Amadeus", no final daquele riso monumental, em que o riso histérico se torna em soluços como que a perguntar, a pedir a absolvição de quem ouve e vê. Ter-me-ia dado jeito um Kappelmeister Bonno, para acompanhar a minha sinfonia de riso.
Volto a afundar-me na cadeira - dá sono aquela cadeira almofadada - e bebo o último trago de vodka. Bola no poste, entra não entra, Cardozo. Gooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo!!!!! Foda-se, vamos lá, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica!!!
Já não me volto para trás, não vale a pena, vejo o Roberto pensar que está no Saragoça e apito final. Saio rapidamente para junto dos meus e só quando chego ao túnel é que me sinto em casa, encostado contra milhares de benfiquistas, a passo de caracol. A procissão faz-me feliz. E uma certeza: nunca mais volto a sentar o meu cu numa cadeira do Piso 1.
Vi o jogo contra o Estoril a partir do piso 1 e vou sentir-me culpado toda a vida por ter metido os pés naquele piso.
ResponderEliminarMacho que é macho é piso 3 onde pode assobiar e praguejar à vontade... :)
patriarca disse:
ResponderEliminarEXCELENTE TEXTO.
Concordo totalmente contigo e por isso é que NÃO LARGO o Meu lugar no PISO 0 da Bancada MEO, é aí que EU e os meus Companheiros Benfiquistas VIVEMOS o Nosso Benfica, desde que A CATEDRAL foi Edificada, AÍ NOS CONHECEMOS e aí somos Cúmplices no Apoio Total ao Glorioso Benfica. No MEIO DO POVO é outra coisa e o Benfica é do POVO.
Não querendo cair no erro, mas se calhar foram os benfiquistas do piso 1 a pagar o piso 0 e o piso 3.
ResponderEliminaràs vezes aqui o patrão cede o cartão e vou para o lugar dele, agora que vida não me permite renovar o RED PASS....piso 1, primeira fila, mesmo alinhado com o túnel (um gajo vê as equipas lá dentro e tal...).
ResponderEliminara vista para um gajo ver bola é do cacete, mesmo bom....o ambiente é intragável!!!
Entre muitas coisas, o que para mim é do piorio é estar no meio de malta que está a conversar sobre toneladas de assuntos que não...futebol.., e que olham para relvado e batem palminhas quando há o BRUÁ no estádio.
muito mau...não cheira, não sabe à bola!!
mas olha Ricardo, à 20, 30 anos atrás, naquela zona, a "fauna" era igual..menos sofisticados, menos elaborados,mas não deixavam de serem..diferentes...quando em fase de "educação Benfiquista" com meu pai íamos para lugar cativo que o Gaspar Ramos arranjava ao velhote, na central, por cima dos velhinhos Diabos, a maioria da malta era diferente daquela com que íamos todos para a Luz em procissão e comer bifana....assim que meu pai deixou de ir à Luz, mudei de sítio, fui para perto da relva ou lá para cima...
é assim...
Este texto trouxe-me à memória histórias da minha iniciação no futebol... E como era diferente ir à bola, no velhinho mas muito saudoso estádio... Recordo jantares, verdadeiros manjares dos deuses antes dos jogos europeus, em que suculentos leitões eram regados por um bom tinto... E a janta que era destinada a 10/12 pessoas, bem divididinha dava para 20/25 ou mais!
ResponderEliminarAquilo sim, era o povo, era a confraternização, era a identificação pelo benfiquismo, era o futebol, era a Mística, era o BENFICA!
O estádio não tinha as condições que este oferece, mas a intimidade que se gerava era bem mais acolhedora que os luxos que este proporciona!
fuck piso 1.
ResponderEliminarfui nas mesmas condições que tu e senti a mesma sensação de deslocado. Parece que eu é que sou o maluco por gritar e apoiar...
Estive no piso 1 no jogo contra a Académica, este ano, com o golo de penalti no lima e s
o neste momento é que viu benfiquismo... de resto era caladinhos ou mandar abaixo...
enfim, bonecos.
Caros,
ResponderEliminarNão são os únicos...mais um a renegar o piso 1 aqui...
Tudo caladinho do principio ao fim e tu mandares um berro de Golooooooooooo crl e ficar tudo a olhar para ti com cara de caso...enfim...para ir para o piso 1 vejo no sofá...
Abraço
Pedro
Vejo a bola no Piso 1 e sempre gritei, abracei estranhos, comi couratos, bebi minis, chamei nomes a quem quis, etc... Tenho companheiros que vêm de todos os lados de Portugal, com muito sacrifício, para ver a bola. Nunca disse mal de nenhum Piso da minha Catedral.
ResponderEliminarVoçes (Ricardo e demais comentadores deste post com a excepção do Águia Preocupada), Benfiquistas a sério apenas porque frequentam o Piso 3, é que são uma merda de snobs e de preconceituosos, não o homem que lavou as mãos três vezes.
ganda Tiago....
ResponderEliminarpensava que só se vendia caviar no piso 1...
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