Esta carne que é só nossa, este sangue que desagua nos rios e logo nos mares e junta Europa, África e América do Sul. Ser latino e indígena e mulato e branco-preto ou preto-branco, vermelho e mistura e raça pura por não ser raça de coisa alguma mas ser na confusão dos genes e dos líquidos e dos aromas e dos olhos um mesmo sentir de sangue quente que é a temperatura do sangue às cores.
Uruguai-Itália é um encontro de poetas e de prestidigitadores - é o princípio da civilização futebolística, antes do Brasil conhecer o eterno gosto da Copa Dourada. A primeira parte será mais uruguaia, embora o poeta Benedetti possa ser considerado italiano de ascendências distantes (algo que poderá levar ao equívoco e levantar suspeitas sobre o agenciamento de jogadores e questões relacionadas com o doping dos sentidos e das palavras). Um golo, logo aos 5 minutos de jogo, chamado A PONTE, põe o Uruguai em vantagem. Eis a repetição do lance:
«Para cruzá-la ou não cruzá-la
eis a ponte
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país
trago comigo oferendas desusadas
entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
um livro com os pânicos em branco
e um violão que não sei abraçar
venho com as faces da insónia
os lenços do mar e das pazes
os tímidos cartazes da dor
as liturgias do beijo e da sombra
nunca trouxe tanta coisa
nunca vim com tão pouco
eis a ponte
para cruzá-la ou não cruzá-la
e eu vou cruzar
sem prevenções
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país»
Chega o intervalo. Na selecção italiana sai Marchisio, entra para o meio-campo Giuseppe Ungaretti. O público, necessitado de criatividade e rasgo, aplaude a substituição. Não espera muito para ver o empate saído da pena do poeta que apesar de transalpino nasceu afinal na Alexandria. Remate em folha-seca:
«MANHÃ - Deslumbro-me de imenso.»
Das bancadas levanta-se uma língua de som gutural que goteja sobre o relvado - a humidade das vozes por cima da humidade do ar. O Uruguai deixa-se controlar e é expectável que a Itália desfira o golpe final. Aos 70 minutos, Ungaretti aparece na esquerda, isolado, e...
«A terra
cobriu-se
de tenra
leveza
Como uma esposa
nova
oferece
atónita
ao filho
o pudor
sorridente
de mãe»
O golo maternal que dá colo e embala os transalpinos para os oitavos-de-final!
Antes do fim, porém, Giuseppe ataca o hat-trick e deixa o público em delírio com um remate de pena só ao alcance dos imortais. Estava feito o 3-1:
«Destas casas
nada sobrou
senão alguns
pedaços de muro
De quantos
me foram próximos
nada sobrou
nem tanto
No coração porém
nenhuma cruz me falta
É o meu coração
a região mais destroçada.»
Menos, puto Ricardo. Este blogue devia ser pago, tanta é a qualidade diária do vossos textos. Aquele abraço.
ResponderEliminarQualidade de escrita excelente, Parabéns!
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