Na noite anterior ao dia que será o dia de jogo, Otília deitada na cama faz contas de somar. Febras, entremeadas, hambúrgueres, salsichas, chouriças, pão normal, papo-seco, pão de cachorro, ketchup, mostarda, barris de cerveja, garrafas de vinho, uma de moscatel, outra de uísque barato, azeite, óleo (muito), sal, pimenta, especiarias (as que der para comprar), guardanapos, batatas de pacote, batatas-palha, cenouras, pickles, lavar copos, comprar pratos de plástico, confirmar se a televisão está boa, ligar para os senhores da MEO, ir às botijas de gás, limpar a rulote, escrever na lousa e no papel as promoções («à entermiada, hamburgue, hot-dog, chourisso e febra»), lembrar o Manel de encher os pneus da viatura, dizer-lhe com carinho: «põe água no carro», ao filho pedir que leve os aventais pretos, à nora não dizer nada, que é uma cabeça tonta.
Passa a noite nisto: relembra tudo uma vez, depois volta a percorrer a listagem das coisas a fazer, perde-se a meio, começa de novo, «febras, entremeadas, hambúrgueres...». Com os anos de ofício, as coisas a fazer são lembradas com método, raramente mudam de posição, tudo tem a ciência que Otília criou na sua cabeça e no seu agir. Começa pelas carnes, a meio põe a necessária padaria, depois vêm os molhos, logo a seguir os bebes, as gorduras, os condimentos, acompanhamentos, a higiene, os utensílios, a necessária burocracia, as limpezas, os escritos e, por fim, os avisos à navegação da tripulação da rulote para que se não percam num detalhe, morram num pormenor, destruam a noite de negócio por um esquecimento sem sentido.
Otília tem dos dias a ideia de um trilho de comboio - pouco interessa o chegar, mais vale acautelar o ir. Limar os parafusos, arranjar as estacas de madeira, limpar as plantas que nascem no meio, fazer brilhar o metal. O comboio - esse comboio que anda em movimento há exactamente 64 anos - deve passar sem um sobressalto, galgar em direcção ao lugar para onde vai sem nenhum contratempo, dentro do tempo previsto, indo indo indo, só vapor, velocidade e horas marcadas no relógio grande dos ponteiros pretos das estações. Chega-se ao destino não por acaso divino mas pelas mãos de homens que acautelam o seu chegar. Os silvos da noite, os raios do dia, o fumo, a humidade, as temperaturas, os frios e os calores, a força do tempo - tudo mecânicos elementos que conspiram contra a desenvoltura do comboio em movimento. Basta que uma roldana, uma porca, uma lasca, um esquecimento aconteçam e toda a engrenagem afunda num tropeço de forma, abrandando o passo ao comboio, sulcando-lhe as vontades, quebrando-lhe o eixo, desencarrilhando-lhe as promessas.
Houve um dia, já longínquo na memória, dia de sol glorioso de um princípio de tarde junto ao Estádio da Luz (o verdadeiro; Otília ainda hoje diz do Estádio antigo esta palavra honesta e genuína: o "verdadeiro"), em que, por maus preparos e ineficazes antecipações, Otília ficara sem pão nem cerveja em frente a uma horda de benfiquistas sedentos, esfomeados, desvairados, alucinados, dementes. Culpa, claro, uma e outra e mais outra vez, da nora que, tendo ido de manhã tratar das unhas dos pés, se esqueceu acidentalmente (Otília reforça sempre, quase 30 anos passados, o a-c-i-d-e-n-t-a-l-m-e-n-t-e com uma projecção que fere fundo em quem a ouve) de passar pela panificadora e pela Central de Cervejas. Como se fosse possível alguém acordar um dia e desmemoriar o cérebro para função tão fundamental, como se um ser humano - na palete existencial entre o profundamente bronco e o brilhantemente genial - pudesse esquecer-se de tais ofícios e deveres.
As gentes aos urros, vociferando impróprios impropérios futebolísticos sobre Otília, queixando-se, esfomeados, da pouca-vergonha que era aquela barraca de madeira sem pão para o conduto nem líquido para a goela. «Nunca mais cá volto, ah é certinho», ouviu Otília a mais de 342 benfiquistas em fúria, chorando por dentro a perda da reputação tão a pulso conquistada a amor, carinho, saborosíssimas gorduras feitas de ancestrais segredos que sobreviveram na família Casimiro séculos e séculos e séculos até desaguarem nos seus truques mágicos de mulher veloz a tratar os comeres. Disso nunca Otília se esquecera na vida e disso fazia questão de recordar pelo menos uma noite em férias - não para estragar o convívio estival, mas para alertar os parceiros de ofício e de vida para as profundezas mórbidas do desconcertante desleixo dos elementos. A nora Fátima tudo isto ouvia e calava - engolia em seco, olhava o horizonte, agarrava-se vezes sem conta ao copo de fresco verde e deglutia, sem botar faladura, uva, água e humilhação. O filho, cansado de ouvir os gritos da esposa (que Fátima no recato do lar ganhava novas coragens), desvirtuava o discurso da mãe, parodiando: «ao menos isto agora dá para rir», o que enfurecia ainda mais Otília e a fazia dar pontapés debaixo da mesa ao marido - que não estava minimamente interessado na conversa, perdido de uísque, lagosta e visões de mulheres lindas passeando cães no calçadão.
Otília era Benfica pela parte do Pai; benfiquista por influência da mãe. Em nova (há quanto tempo), comovia-se com José Águas: uma paixão que lhe durou a vida inteira e ainda não esqueceu - atrás das garrafas, junto ao bibelot de uma menina triste que tem na prateleira de cima, mora ainda o elegante benfiquista levantando uma orelhuda Taça dos Campeões. Por decoro e respeito ao esposo, fixou-a ali para que só ela o veja. Quando alguém pede um Martini (é tão raro pedirem Martinis nas rulotes), ela esquece-se das febras, segurando o antebraço do Manel: «deixa, eu sirvo; está um calor insuportável nas carnes».
Sente saudades do Benfica, Otília. Saudades de ser feliz, indo ao estádio. Comove-se muito com a alegria das pessoas antes dos jogos; entristece-se com a tristeza das pessoas depois dos jogos. No meio, enquanto as pessoas se alegram ou entristecem a ver o Benfica, ela fica sentada num banquinho de madeira a ouvir o relato. Cansada, de olhos cheios de fumo e bochechas encarnadas de calor, fecha os olhos e encosta a cabeça contra a porta da rulote. Imagina que está dentro do estádio, ouve as jogadas e vê tudo por dentro dos olhos. Quando é golo, festeja com o marido, o cunhado, a nora e os filhos. Imitam o som das bancadas: «Glorioso SLB, glorioso SLB», lá do alto de onde vêem só luzes e um fumo que sai do relvado, sobe as bancadas, torneia os tectos e se esvai em direcção ao céu. Todos aos saltos na rua, correm até ao viaduto, batem em carros, apitam buzinas, abraçam-se uns nos outros todos engalfinhados. Depois, quando o golo perde o prazo de validade dos afectos, voltam silenciosos para perto da rulote e baixam o volume do som para favorecer outro golo - se ouvirmos baixinho o relato, potenciamos novo milagre.
Dependendo do resultado final, Otília assim também depende de si própria. Se o Benfica ganha, está tão feliz que se torna mecânica no ofício - ninguém quer saber da qualidade da febra se ganhou. Se o Benfica perde, fica tão triste que faz questão de preparar as melhores iguarias para os olhares e gestos e palavras desiludidas dos clientes que estão quase quase a chegar - pior do que a derrota, só mesmo a injustiça de lhe juntar uma ceia tão mal servida.
Otília finge sempre que não nos observa. Se olharmos para ela, os seus olhos estão na grelha; se não olharmos, ela olha-nos com amor e ternura. A dor nossa é a dor dela. A sua infelicidade é a mesma que sentimos. É por isso que Otília faz brilhar os olhos sempre que, perdidos ou ganhados, lhe dizemos com o coração na boca: «Estas são as melhores bifanas do mundo».
Um belo texto. Parabéns ao seu autor.
ResponderEliminarAssim...tá bem!
ResponderEliminar