segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O delay que nos mata o golo


Para qualquer adepto de futebol há poucas coisas mais irritantes do que o delay. Talvez aquele sócio do Piso 1 (fui lá uma vez e não volto, já disse) que, atrás de nós, enquanto soltamos o corpo e a voz para a acústica do Estádio, nos ordena que nos sentemos: "está a sentar, isto não é o peão", ao que normalmente tenho por tradição responder: "está a levantar, isto não é a ópera", mas só de vez em quando, não vá a maralha ter de arrefecer os rabinhos e aquecer as raivas contidas, atirando-me, qual Lyonce Viiktória, em voo rasante pelas alturas do anfiteatro. Com sorte, poderia imitar a já antiga Águia do Barnabé que, entre bezanas de tarântulas, ratos e toupeiras, às vezes acabava a fazer compras na Zara do Colombo.

Talvez o assobiador compulsivo, sempre tão empenhado em escolher criteriosamente os momentos do jogo em que se levanta para fazer barulho: ou quando chama o árbitro de "minha querida papoila" ou quando carrega todas as frustrações da sua vida num só instante e as traduz num gesto seco - três dedinhos em riste e dois em curva para a solidão da língua - em direcção aos Taliscas desta vida e acaba com um sempre digno: "joga à bola, palhaço", não sabendo ser ele o verdadeiro protagonista do circo idiota em que voluntariamente se inscreveu.

Apetece sempre qualquer coisa, nestes momentos: um "vai assobiar para o caralho, cabrão!" ou então, numa perspectiva mais preocupada com a higiene do cefalópode: "coças o cu e metes na boca, és pouco porco, és!", mas atentemos que é o Benfica que estamos a ver, é escusado tornarmos o Estádio numa caótica guerra de aldeia de gauleses, entre peixes podres, menires, javalis e um bardo atado a uma árvore. Há-de chegar o dia em que soltemos pequenas lanças de veneno no calor dos cachecóis.




Mas o delay, essa finta dos deuses das ondas de som, tem de estar presente em qualquer campeonato minimamente credível que premeie as maiores irritações para um adepto. O delay é cobarde, esconde-se no ar, esvai-se no tempo, ri-se de nós em silêncio e depois em som, esvoaça por cima, aparece por dentro, cai num fosso vazio, sobrevoa-nos pelo céu. O delay goza-nos, enquanto tragicamente nos relembra a nossa condição humana. Adora mostrar-nos do que é capaz, adora saber-nos impotentes para o controlar. O delay é a prova intangível de que há maldade no mundo.

Quantas vezes vimos jogos em tascas, esperando aquele golo salvador ou temendo o golo da desgraça, enquanto um velho de transístor no ouvido, de pé, mãos acenando ao ar como que antecipando a euforia ou a depressão colectiva, arrisca uma umbilical relação com o divino delay e se faz deus, anunciando, com 3,456 segundos de diferença, o goooooooooooooooooooooooolo? Quantas, delay do céu, quantas? E nós ali, olhando esperançados o ecrã ou morrendo por dentro no temor da tristeza, feitos bonecos humanos nos braços de forças incontroláveis, apenas iscos da existência. O crime de nos negarem a surpresa infantil do gesto do golo.

O eterno caso do gajo que está no café, todo equipado à Benfica, de rádio no bolsinho de onde sai um fio malandro que só lhe acaba nos tímpanos. O herói da tarde. Para ser visto, vai para a mesa central, a primeira, a metro e meio da televisão. Nas jogadas perigosas levanta-se em gestos de desespero, enquanto nós ainda estamos a ver a bola nos pés do Júlio César. Sabemos que não vai dar golo, sabemos da impossibilidade da festa, do remate nas redes, do lance brilhante, da magia do esférico a voar para a baliza. Basta atentar no gesto demoníaco do pobre demónio a pedir mais uma mini - e nós ainda a vermos a bola a passear no meio-campo. Para quê olhar a televisão, se o delay nos goza com a ausência de golo? De que vale encher o peito de esperança naquele lance pela ala se na Luz ainda ninguém tinha levantado o coro glorioso da jogada decisiva?

Como explicar o delay àquele velho sócio do Benfica que está no estádio de rádio ao ouvido a querer ouvir o golo antes do golo acontecer?

7 comentários:

  1. Quando o jogo começa dou a volta pelas mesas a espreitar os ouvidos. Assim que vejo um fiozinho nas orelhas bato nas costas e aviso, com o dedo indicador encostado aos lábios :caladinho ou la pra fora. Resulta. Mas estou sempre a olhar a sua expressao corporal. O homem cala-se mas quando é golo... fuck delay

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  2. Curioso que ontem cumpri uma tarefa penosa de ir ver um jogo do glorioso num restaurante. Embora nestes dias com uma essência de tasca. Já não o fazia há uns bons anos. Em cada lance mais rispido ouve-se logo a lagartada. Depois uns velhos que viam o jogo de pé sempre a mandarem bocas do tipo: "O Benfica não joga nada. No tempo do Jesus é que isto era bom" e "O Sporting ontem foi roubado. Aquilo foi uma vergonha". E eu: "Foda-se..."
    Como devem saber o zé povinho é assim... engole tudo o que a CS lhe deia para comer.
    Quando foi golo festejou-se normalmente mas houve umas picardias sempre habituais entre Benfiquistas e Lagartos.
    Triste experiencia. Rico estádio e rica casa...Nestes dias é impossivel de outra maneira.

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  3. Mas o pior é quando o celebrado golo é posteriomente anulado. É fodido!

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  4. Explicas assim:
    "Oh amigo! Lembra-se daqueles atrasos quando na RTP1 entravam em directo, via satélite, para o correspondente da Russia? Agora é igual, so que de proposito!"

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  5. Texto delicioso!
    Muito obrigado por mais este momento bem passado.
    E sem delays.

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  6. Tive o pior delay na minha vida quando um benfiquista diz golo do Porto aos 92 e na tv estavam no meio campo a lançar a bola. Rezei a todos os deuses para que não fosse golo, mas no estádio a bola já tinha entrado. Ñ valia a pena. Ainda assim tive uma restia de esperança, que morreu quando a tv me tirou as dúvidas.
    Nunca mais vou esquecer aqueles segundos. Chorei e pensei ainda sou mais benfiquista do que era antes da bola entrar!

    O Irredutível

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Vai ao Estádio, larga a internet.