segunda-feira, 30 de maio de 2016

Matraquilha-me



Para jogar matraquilhos, mais do que dominar nuances técnicas de pulso, é necessário ter indumentária a preceito. Uma pessoa não pode aproximar-se de uma mesa de fato, por exemplo. O jogo exige de nós a devoção solidária de um respeito tabernal - calças surradas, camisola rasgada, sapatos gastos, manchas de vinho na pele. Resquícios de vida. O que deve acontecer: cada matraquilhador com a sua camisola: de um lado, os do Benfica; do outro, os do Sporting. Cada par de jogadores com a sua camisola gasta de anos a fio. Imaginemos: do lado dos benfiquistas, dois bípedes com as camisolas do Valdo e do Paneira; os sportinguistas vestidos nas costas com nomes estranhos como Juskowiak e Lemajic.

Todos gritam com as cervejas encostadas ao ábaco que leva roldanas de um lado para o outro consoante as bolas que batem no fundo da madeira, levantam um som oco e criam gozo entre os atletas. Uns definham na vergonha daquela má defesa, em que a mão esquerda prendeu os nós e não soube ver aquele engano diagonal do pé pintado a preto e branco de uma chuteira cheia de ângulos; outros festejam, quase bêbados, aproveitando o som das bolas que vão caindo do lado contrário, para dois, três, quatro goles directos para a garganta onde se fazem outros jogos de matraquilhos entre a goela, a língua e o céu da boca. O palato tem coisas que a razão desconhece.

Os bonecos acordam, vivem, jogam e adormecem sempre da mesma forma: hirtos no seu abraço de metal, uns com os outros, quase tocando o relvado. Há-de ser intrigante, sufocante até, estar ali uma vida inteira tão perto do terreno de jogo e nunca poder tocá-lo, como se os tivessem transportado para uma vida de semi-enforcados, não mortos mas quase, atirados para uma prisão de horizontais por onde vão respirando, chegando-se às vezes à direita, outras à esquerda. E o coração do jogador? Palpitando por dentro de uma tinta com 30 anos, uma tinta que não cobre os sentimentos do benfiquista que vive dentro de uma plataforma crua de esmalte e químicos.

Quem é, afinal, aquele médio direito que, se for bem orientado, cobre toda a baliza, recupera bolas na dúvida da gravidade ou de um tampo menos capaz, que lança contra-ataques venenosos para uma bola que quase vai entrar não fosse bater no poste pintado a branco junto à madeira? Quem quer saber deste homem que vive atrelado a outros uma vida inteira, com o corpo percorrido por um metal  que lhe fere o fígado, os pulmões, os rins, as dores, os amores, as saudades? Lançado lateralmente de um lado para o outro, vai vendo o cérebro desalmadamente horizontar e mesmo quando quer rematar, porque vê o golo ali tão perto, é subjugado a uma mão que o direcciona para a defesa ou passe lateral que ele naturalmente questiona porque já antecipava (com melhor visão) a jogada final. Quem é este boneco?

Vai para os matrecos de forma humilde, companheiro. Entende quem conhece o ofício: sempre em 2-5-3, sistema e modelo que atacam o futebol calculista.  Veste-te com respeito. Bebe muito, como devoção. E, nos intervalos dos golos, dá de beber aos bonecos.

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