quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

É GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLO DO BENFICA, É GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLO DE EUSÉBIO



Não sei o que é, ao certo; se o crescendo

"Sou dooooo Beeenfiiiiica"

se é o orgulho que aquela voz transporta, como que carregando nas sílabas todos os momentos gloriosos que este clube viveu

"e iiiiiiiiiiisso m´envaideeeece"

ou talvez a voz radiofónica dos grandes tenores do século passado misturada com as acentuações perfeitas em português-veludo das personagens dos filmes a preto e branco de filmes de Leitão de Barros, Perdigão Queiroga ou Arthur Duarte

"tenho aaaaaaaaaaa geniiiiica que a qualquer engrandeeeeeeeeeeeece"

parece que vejo a casa da minha avó, a sala ampla, portadas para a luz branca-transparente das paredes solares do Alentejo, na mesa um bordado minucioso, fotografias gastas, um terço, um rosário e o barbudo-mártir ao lado dos pratinhos de pássaros, de mãos e braços abertos para a eternidade. As asas de anjinhos de loiça querendo voar sobre os livros e algo ou alguém, de dentro das histórias fechadas em lombadas a couro vermelho e letras a ouro, que sai e anuncia

"Sooooou de um cluuuuube lutadoooooooooooooooor"

e parece que vejo a sala, depois a casa toda, a rua, a vila e todas as salas, ruas e vilas encostadas de ouvidos à escuta junto à telefonia, enquanto Artur Agostinho canta "É goooooooooooooolo do Benfica, é gooooooooooooolo de Eusébio" e os pássaros dos pratos aterram nos ombros de famílias inteiras em silêncio, escutando golos e passes e defesas, imaginando os lances, criando novos movimentos, inventando as cores que não vêem nos botões do aparelho que lhes sopra que o Benfica está a voar sobre o Real Madrid, que é Cavém, Coluna, de novo para Cavém, abre para Águas, levanta de primeira para a área, Eusébio amortece, remate de Cavém, golo

"que na luuuuta com fervoooooooooooooooooooooooooor nuuuuuuuuuuuunca encontrou rrrrrrrivaaaaaaaaaaaaaaaaaaaal"

e o país explode vindo de um soturno silêncio de damas-de-companhia, medos, fomes, gabardinas e chapéus nos balcões dos cafés, para um grito que faz levantar as saias da donzela tímida que esperava no banco de jardim o seu prometido, que faz ouvir a voz daquele velho sisudo que não dava palavras ao mundo, faz abrir de alegria a cara do pai-de-família que, todo metido no ar, prometeu bebidas, comidas e o que se quisesse a metade do povo que se abraçava, se beijava, se aleijava, se atirava contra as amarguras do tempo enquanto as portas se partiam, mesas eram mergulhadas na intempérie de pernas, braços, cabeças, gente aos pulos, gente aos gritos, gente aos beijos, o padeiro a agarrar na jarra de flores e a levantá-la no ar, em gesto de vitória: "é nossa", e as crianças, espantadas, aos gritos histéricos, a mãe "cuidado com o deus-menino" e o deus-menino estatelado no soalho, embebido em aguardente e ferido de morte pelas vidraças da garrafa, dos copos, das loiças, pés atrás de pés, espezinhado o filho de Nosso Senhor e, na parede, o barbudo parecendo rir de sangue

"neeeeeeste nooooooooooooooosso Poooooooooooooooooooortugaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaal"

não posso dizer, não sei dizer, o que é, que me faz levantar no Estádio, emocionar-me, ter amor desta maneira por uma ideia que não tem corpo nem precisa de ter, por um ideal, um voo, um sentimento, uma dor e uma alegria tamanhas sempre que oiço

"Seeeeeeeer Beeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeenfiquista"

e transporto dentro de mim todas as memórias misturadas numa só, passado, futuro, presente tudo numa amálgama de tempo em que vejo slides difusos, pequenos momentos, grandes momentos, vêm-me à alma aqueles instantes e o Estádio, aquele ecoar do golo que parecia que começava por debaixo da relva e ia espraiando a voz, subindo lentamente pelas escadas e pelos corpos das pessoas, era um língua de som que, quando a bola tocava as redes, nos afundava como onda, goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo e nós morríamos uns nos outros, engalfinhávamo-nos uns nos outros, já sem saber se as pernas e os braços eram nossos ou dos outros, uma massa compacta de gente e cachecóis, bandeiras, chapéus, camisolas, sapatos, fumo, papelinhos e o ritmo que subia, pulsava, o chão tremia, o ar vibrava e começava a dança

"é ter na aaaaalma a chama imensa, que nos conquiiiiiiiiista e leva a palma à luz inteeeeeeensa"

e o Sol vinha mesmo, risonho, beijar-nos, em tardes que pareciam infinitas, tardes que amoleciam o betão e se prolongavam para lá do possível

"com orgulho muito seeeeeeeeu, as camisolas berrantes, que nos campos a vibraaaaaaaaaaaaaaaaaaar"

e os velhos lembravam-se de ter erguido com as mãos as vitórias e o Estádio, os novos ouviam e queriam fazer parte, os Pais levantavam os filhos, mostravam-lhes o que era aquilo, queriam-nos ali para toda a vida, e os filhos mostravam orgulho e gratidão por poderem vibrar, e pais, filhos, avôs, netos, estranhos, conhecidos, amigos, amantes, namorados olhavam-se dentro do golo e cantavam

"são papooooooilas saaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaltitanteeeeees"

e então calava-se tudo um instante, um pequeno instante em que 120.000 pessoas não faziam um único ruído, jogadores e adeptos numa espécie de comunhão do silêncio, os holofotes como templos antigos, os placards electrónicos gigantes anunciavam 00:00, cheirava a relva e a terra molhadas, a fumos inebriantes, sentia-se um pulsar que era a própria respiração do Estádio, tum tum tum tum tum tum, e era de dentro dele, por osmose do betão para os pés, depois pelo corpo, até ao céu, que se iniciava o estrondo da batucada

"Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica!"

8 comentários:

  1. Nos dias que correm, cada Benfiquista deveria ter isto emoldurado, como aqueles poemas dos Salmos que os religiosos usam para se recordarem daquilo que é maior que eles a cada vez que passam por aquele pedaço envidraçado de parede.
    Se o que alimenta os outros é o ódio a esta "massa compacta de gente", a nós, que temos a felicidade de pertencermos à maior instituição deste país, alimenta-nos a vertigem de estar no céu e tocar-lhe ao ombro de gigantes.

    Obrigado. Tenho sorriso para mais de uma semana.

    ResponderEliminar
  2. Nisto, de facto, és magnífico, Ricardo. Uma pessoa comove-se ao ler isto. Isto é ser do Benfica. É ser Benfiquista. Palavras e prosa que me trazem muitas memórias, muitas recordações. Parabéns e obrigado. Não estou muitas vezes de acordo nas questões técnico-táticas, mas nisto, não tens par.

    Saudações Benfiquista.

    ResponderEliminar
  3. Uma leitura que nos enche a alma de orgulho!
    Não há clube igual! Bem haja.

    ResponderEliminar
  4. Um dia vou ser capaz de escrever um comentário à altura deste, digamos, texto. Hoje não é o dia.

    Hoje, só duas palavras: 'obrigado' e 'amen'.

    ResponderEliminar
  5. Foda-se. Lágrimas.

    Pedro B.

    ResponderEliminar
  6. está bestial, ó Ricardo, mas diz lá, pediste a inspiração emprestada ao Lobo Antunes, foi ou não foi?

    ResponderEliminar

Vai ao Estádio, larga a internet.