Há muitos muitos muuuuuuitos anos, nascia na Cedofeita um rapaz raquítico, de porte frágil, orelhas estranhas e uma verruga no coração. Os médicos atentaram no pormenor verruguento com cuidada atenção: nunca antes tinham visto tal coisa e decidiram, após profunda e demorada entabulação com o prior da freguesia, logo aconselhar os pais do rebento que o melhor, para evitar fúrias demoníacas e vulcões do demo, seria dar-lhe um nome de padreco ou pelo menos fazer uma referência, mesmo que sigilosa, à verruga consubstanciando-a num título religioso, para ver se Deus - nem sempre de bom humor com verrugas, quistos e outras deficiências - deixava passar este fenómeno sem iras divinas nem achaques nervosos.
Algo despeitados, os pais da criança lá acabaram por anuir aos desejos celestiais do padre de serviço. Estava em causa a sobrevivência do menino Jorge; tudo o que servisse para acalmar as forças do Eterno seria parco, até porque havia outras questões ainda por definir no seio do lar, como as recorrentes cagadelas da mãe nos lençóis brancos e a estranha mania do pai de ludibriar os clientes vendendo, não raras vezes (e disto o Senhor estava a par, com toda a certeza), água da torneira por águas finas da França. O casório deu em divórcio, naturalmente - nenhum Deus, por Santo que seja, aceita observar tais fracas virtudes nos seus apaniguados, menos ainda quando se misturam, em simultâneo, os pecados da badalhoquice com os do furto. Caramba, até para o Criador há limites.
Não interessa, no entanto, explorar este tão mal paridinho casamento. Detenhamo-nos em Jorge, agora já baptizado (não se sabe se a água dos canos se a Perrier) de Jorge Núncio de Lima Tinto da Encosta. Um nome que afinal, esqueçamos o título de embaixador do Papa que ali aparece em segundo lugar para não levantar grandes suspeitas, até revelava algum charme portuense. O "Lima", sempre tão agraciado pelos habitantes da Invicta, nome de ascendências históricas e nobrezas mil. O "Tinto" que funciona como os "Smith" ou os "Silva" da Cedofeita - nome popular, é certo, mas digno. E, é lógico, o "Encosta", que leva já milénios idiossincráticos no lombo, nome de marqueses e ladrões, feirantes, putas, prestidigitadores e seminaristas - no fundo, tudo da mesma cepa, apesar dos apesares.
As professoras na escola ou os vizinhos nas montras dos devedores de fiados liam o nome: Jorge Núncio de Lima Tinto da Encosta e não podiam deixar fugir um "apre, quisto é nome de tripeiro, carago!", sempre entoando o "tripeiro" com mais força, mais veemência, mais orgulho, porque nisto dos nomes e das origens os corações batem sempre mais depressinha.
Jorge Núncio fez escola entre os seus pares: costumava apalpar os rabinhos dos colegas quando eles não estavam a ver e depois ria-se muito (malandro!) com aquele ar de espertalhaço que a verruga no coração sempre lhe deu. Tinha algumas dificuldades de aprendizagem, demorou dois anos para aprender a tabuada do 1 - via sempre mais à frente, Jorge Núncio; enquanto os colegas viam num 1x2 um 2 eles juntava sempre o x e respondia 1x2, que era o que ele tinha posto no Totobola sobre um emocionante Cedofeita-Madalena.
Devido a estes episódios menos brilhantes, os amigos jocosamente apelidavam Jorge Núncio de "génio", denominação que ele levou no sentido literal e por isso repetia vezes sem conta sempre que chegava a casa. Pena a mãe estar aos peidos em cima do sofá e o pai a encher garrafas de PerrIer com água do Douro - a falta que não faz um harmonioso lar para o crescimento das crianças. "Papá, mamã, dizem que eu sou um génio, papá? mamã?", e o pobre Núncio num aflitivo e solitário pesar, não tendo a quem contar a sua evidente genialidade. Havia uns irmãos que por ali andavam aos caídos, um fazendo-se de macaco - "coitado", dizia o senhor prior, "é anormal" - e outros dois que passavam as horas sentados a contar os peidos da mãe, numa estereofónica sucessão de orquestra, perdendo-se, no entanto, na contagem, tal era a produtividade da progenitora - "mamã, vamos em 532 ou 533? Com molho ou sem?".
É triste, de facto, pensar no que Jorge Núncio teve de passar para chegar a homem. Tantas provações, privações, privados, parvoíces. O rapaz até tinha algum talento (belíssimo a preparar ramos de flores, por exemplo), mas a vida sempre a rebaixá-lo à condição humana do esgoto existencial. O padre da freguesia costumava dizer de Jorge Núncio aos vizinhos que "o rapaz até possui qualidades, mas quem patina em tais destroços tarde ou nunca se embeleza", mesmo que, nas tardes-noites, depois da missa, explorasse a beleza de orelhas estranhas, porte frágil e verruga no coração do menino Jorginho com deleite e mal-disfarçada desfaçatez, obrigando-o a horas extraordinárias a ajeitar as vestes dos santinhos, a cantarolar cançonetas de fraco teor bíblico e - Deus nos perdoe a confissão - a rezar em silêncio (ou quase, a saliva às vezes desnorteia-se), de joelhos na fria mármore do altar da gloriosa Igreja Paroquial de São Martinho da Cedofeita. São pecados que os santos não vêem porque não têm nem coração nem verrugas mas que as gentes, mesmo do lado de fora, pressentem.
Porém, a vida nem sempre se mantém neste patamar excremental. A muito custo - e tanto que Jorge Núncio pediu -, os pais acabaram por ouvir as suas preces (não há peidos que sempre durem nem água suja que nunca acabe): vinha aí o Colégio das Caldinhas, antro de luxo de uns jesuítas loucos por novas contratações de Inverno. Foi feliz, Jorge Núncio, em Santo Tirso. Comia duas ervilhas ao almoço, ao jantar sopa da panela - uma nhanha de água da canja com restos de ossos a preceito coada para dentro de um copo. Tinha brincadeiras e tudo - corria atrás de um pneu horas a fio, enroscava-se nas árvores, descobria o amor: um esbelto cigano que assentou tendas no descampado junto ao Colégio. Com ele descobriu a virtude do engano. Adorava andar às cavalitas do feirante, roçando a verruga nas costas largas do vendedor de putas. Conheceu putas, belíssimas mulheres que alimentavam o seu desejo intestinal de maternidade. Jorge era feliz em Santo Tirso - exceptuando as noites e as surpreendentes visitas de estudantes teológicos à procura da absolvição das almas, tinha uma razão para viver, quase não chorava quando ia dormir, possuía verdadeiro amor na verruga e já estava quase-quase pronto a ser um homenzinho.
Havia, no entanto, algo que Jorge Núncio ambicionava e não podia cumprir: ver o Bi-Campeão Europeu ao vivo. As tardes e noites que passou de transístor ao ouvido, com um padre em cima, a deleitar-se com os golos do José Águas, do Simões, do Torres, do Eusébio; momentos que o marcaram, enquanto fechava as pernas de espanto e desejava ser feliz num emprego mais próximo do Estádio da Luz. Infelizmente, diziam-lhe que essa era a terra dos mouros, que não podia aproximar-se, que eles comiam crianças ao pequeno-almoço, que era preciso ter cuidado - e desavergonhadamente lembravam-lhe a verruga no coração e a necessária devoção aos santos, não fossem eles conspurcar-lhe a existência. Inventaram-lhe um ofício num banco, puseram-lhe uma gravata ao pescoço e disseram-lhe que a partir daquele momento devia esquecer o Benfica: era portista e ponto final!, era do clube dos seminaristas e dos padrecos, dos governantes do Regime e dos pidescos, dos necrófilos e dos sem-lar. Era, no fundo, da equipa de Deus. Com camisola listada azul e branca e sentimento azul e bronco.
Sofreu muito, Jorge Núncio, com o trauma. Mas, como "génio" que era, rapidamente desenvolveu as suas maiores qualidades advindas dos traumatizados: bem patrocinado pelo chefe - homem de grandes contactos na região, empresário de sucesso e ilustre banqueiro -, não demorou a fazer de Núncio uma visita regular na sua casa da Madalena - anos mais tarde, Jorge Núncio também cumpriria esse sonho de possuir imóvel na zona, fazendo de GPS a árbitros e outros aconselhamentos matrimoniais que nos escusamos a explicar não vamos ser presos, no lugar do famigerado terapeuta, por não estarem as provas suficientemente validadas pela Justiça Portuguesa.
Núncio comia e bebia como nunca: autênticos banquetes, já não de ervilhas e sopas da panela mas de latagões atraentes, musculados, bem oleados por vaselinas de castas da região (a manifesta qualidade reconhecida que há no Douro); Núncio vomitava muito: normal, o organismo de verruga e o cérebro de ervilha não tinham ainda aquela finesse que viria a adquirir quando se tornasse dirigente do Futebol Clube do Porto e transpusesse todos os conhecimentos que foi adquirindo ao longo da vida em bordéis, cerimónias, casas de empresários, seminários, igrejas, paróquias e demais empreendimentos turísticos, alguns no Brasil, que conhece de lés a lés, entre o calor da noite e as noites cheias de calor. Jorge Núncio tinha finalmente atingido o patamar da degeneração humana: queria ser grande e foder o mundo por o mundo o ter fodido.
Não podemos, nesta história, passar um pano sobre a importância que o povo portista, macerado por uma existência de infertilidade de sucessos, teve para a elevação de Jorge Núncio a herói regional. E, claro, não há como esquecer aqueles seres que pululam pelos jornais e televisões, sempre tão preparados para o elogio da loucura. Erasmo, uns séculos antes, falou deles todos. O problema é que ninguém lê.
Que maravilha!!!
ResponderEliminarClap clap clap clap!