quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Estádio da Luz

É provável que ainda ninguém tenha percebido mas, dentro do Estádio da Luz, há outro: o Estádio da Luz. Coincide, com uma forma oval a que na escola primária dávamos o nome de conjunto, com este em metade e foge dele, para o Alto dos Moinhos, com outra metade. É um Estádio grande, enorme, tem 3 anéis, é duro, insistente, provocativo. Sempre que vou ver o Benfica lembro-me dele. E sinto saudades.
Das portas estreitas, dos corredores imensos, do barulho dentro dele, da sua imponência. Aquilo não era um estádio, era a Arca de Noé; não era um projecto de arquitectura moderna, era um templo antigo. Nele, gregos ensaiaram as primeiras noções de teatro, romanos construíram impérios, medievos lutaram de espada em riste por mais uma mão de território. Não se abria aos olhos do adepto de forma fácil, era preciso entendê-lo, percorrer-lhe as entranhas anos a fio, milénios a fio, ir de barco navegando pelos seus mares.
Para uma criança, era um Adamastor que adorávamos e temíamos. O que estaria do outro lado, passado o túnel de acesso? Um mar, um rio, ilhas e sereias, domadores de leões, artistas, raparigas de brinco de pérola? E que cores traria? Que imensidões, que coordenadas, que belezas anunciava? De mão dada com o meu Pai, de cachecol maior do que eu ao pescoço, timidamente avançava por entre o túnel, enquanto ouvia um borbulhar em êxtase, um som antigo de milhões de anos vociferar e que ninguém sabia ao certo como e de onde vinha.
Não se via o relvado, como agora. Era preciso, primeiro, beber-lhe o sangue. As bancadas eram muros para quem chegava. Antes da beleza, como uma obra de arte, vinha a incompreensão, a dificuldade em chegar perto. Depois, sim, ultrapassadas todas as barricadas, todas as intempéries, todas as gangrenas e escorbuto da navegação marítima, o sol, a luz, as indígenas semi-nuas dançando ao ritmo do batuque, da forma, da cor. Do maravilhamento.
Dentro do Estádio da Luz, há um Estádio. Lembro-me dele. E sinto saudades. Em todos os jogos, em todos os segundos, em todos os momentos em que vejo o Benfica, sentado confortavelmente num lugar sem chuva, sem gente a vender as coisas mais inacreditáveis para as necessidades de quem vê um jogo de futebol, sem pancadaria, sem homens de rádio ao ouvido, sem placards electrónicos sujos, enormes e frios, sem o sentimento de estar verdadeiramente em casa, lembro-me dele e tenho saudades.
Tenho saudades do Benfica.

15 comentários:

  1. Tenho saudades de passar o portão vermelho e nada ver. De subir uns degraus e já envolvido por um estranho som vislumbrar algo verde. Depois descer mais uns quantos degraus e avistar um relvado. Até que de repente, enfim, a Luz!

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  2. Gosto muito do nosso estádio novo.

    Mas também nunca me hei-de conseguir desligar emocionalmente do nosso grandioso Estádio da Luz, nem da sensação de ser uma de 120.000 gargantas a puxar para o mesmo lado.

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  3. Muito bom post.
    Nunca tinha pensado a sério nas saudades do velhinho Estádio da Luz, mas ao ler este post apercebi-me que uma parte do Benfica foi 'apagada'.
    Realmente a 'monstruisidade' daquele estádio era única, e hoje em dia nem de perto temos esses sentimentos, muito bem relatados no post, ao entrar na nova Catedral.
    Parabéns pelo post, e VIVA O BENFICA!

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  4. Tão verdade. Eu, em miúdo, não ia muitas vezes ao "templo" mas, das vezes em que fui, consigo lembrar-me do sentimento que falas.

    E era tão imponente aquele Estádio!

    Gosto muito desta nova casa, acho que estamos muito bem servidos para o presente e para o futuro mas acho que nenhum benfiquista que passou pelo antigo Estádio o esquecerá alguma vez.

    PS- Nem sempre comento mas quase diariamente venho cá ver se há novos posts e ler os comentários que são feitos. Gostava de vos pedir uma coisa: escrevam mais regularmente! A sério, larguem a preguiça e arranjem tempo para mais posts! Os leitores merecem:)

    Abraço!

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  5. Um texto pode inserir-se em 1001 categorias: estar bem ou mal escrito, fazer-nos rir ou chorar, ser sério ou ligeiro, entre um número infindável de classificações possíveis.

    Depois, há aqueles que poderiam levar vários rótulos, mas que na 'embalagem', em letras garrafais, se poderia acrescentar: a leitura do texto seguinte pode ter reflexos imediatos no pensamento do cliente e danos irreparáveis na alma de quem adquire o produto.

    Este texto é um desses casos especiais. Sabe-se que não é fácil dar palavras aos sentimentos. Ainda por cima, quando o tema é saudade. Ler este texto foi como olhar para dentro de mim próprio, reavivando as minhas memórias mais profundas como se estivesse a cruzar as palavras com a minha ideia de Benfica.

    Leio muito. Livros. Jornais. Revistas. Mas, nunca tinha lido um artigo sobre o velhinho Estádio da Luz com que me identificasse ao ponto de pensar que foi escrito para mim. Sobre ele, está lá tudo - imponente, majestoso, a catedral das vitórias, o templo da glória. Numa palavra: Grande! Tal como este texto.

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  6. Quando comecei a ir à Luz, a escolha era sempre ou o Terceiro Anel ou uma Tribuna Lateral Superior. Qualquer um dos casos tinha a magia especial de conseguir ir aumentando a expectativa do que aí vinha: entrava-se (nas tais portas exíguas, uma pessoa de cada vez), e tudo o que se via era betão, como se estivéssemos na antecâmara de um Coliseu dos tempos modernos. Depois subia-se, mais e mais, ia-se continuando a subir, sempre a ouvir aquele barulho surdo por trás de todo o betão... Até chegarmos ao fim dos lanços de escadas. Aí, chegando à porta pela qual iriamos sair do ventre daquele monstro, começávamos por ouvir melhor aquilo que nos esperava lá fora, até de repente vislumbrarmos uma baliza... Um pedaço do relvado, verde e pujante, que se ia revelando mais e mais a cada passo em diante... Até chegarmos cá fora e vermos a beleza assustadora daquele Estádio.

    Nunca ninguém que por lá passou esquecerá a Antiga Luz, principalmente quem lá passou anos de vida. Obrigado pela lembrança, Ricardo, e parabéns por (mais) um grande texto.

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  7. De acordo! Fui poucas vezes ao antigo estádio, mas o que experienciei foi qualquer coisa parecido com o que foi descrito, tenho a certeza.

    Abraço

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  8. E que linda é a Luz, caro Quetzal!

    Eu também gosto muito, Lupin, mas, confesso, ainda não sinto aquilo da mesma forma. Algum dia sentirei?

    Benfiquista, é isso que dói, essa memória que se apagou (ou que pelo menos não pode ser despertada pela visão).

    Pá, João, esta semana não te podes queixar!:) Mas, sim, o pessoal (os 5 leitores deste blogue) tem pedido o que pediste: mais assiduidade. Eu faço o que posso, quando posso. Estes meus companheiros de estrada é que são (ainda) mais calões que eu!

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  9. Ricardo, emocionaste-me! Mais um bocadinho e chorava. Não me faças mais dessas! :)

    Fico feliz que o texto tenha conseguido chegar a esse lado dessa forma. O templo vive-nos ainda de forma intensa.

    De nada, Mago. Eu é que agradeço essa descrição. É isso tudo. Eu costumava ir para o primeiro anel, do lado do terceiro anel mais alto. Claro que fui muitas vezes para o terceiro, onde a visão do jogo era sublime, mas a partir de uma certa altura quase sempre ia para mais perto dos jogadores, perdendo, claro, aquela visão abrangente das bancadas superiores. Não se pode ter tudo.

    Abraço, Roger.

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  10. Que saudades do Velhinho Estádio. Era imponente e como ele se transfomava a cada entrada da equipa em campo, a cada golo do Benfica.
    Explorei bem aquele Estádio, vi jogos praticamente em todos os sectores, mas havia 2 sítios especiais para mim. Um era junto à relva e sentir-lhe o cheiro (apesar de ter o gradeamento de ferro à frente) e o outro era lá no cimo do Velhinho 3º Anel, mesmo na última bancada. Ali eu era o rei, ali eu controlava tudo. Estava no topo do Mundo a ver a minha equipa a jogar.
    Que noites magnificas - jogo com o Marselha, Estádio cheio. Que tardes fantásticas - jogo com o porto (3-1) Estádio a abarrotar. Entre outros grandes momentos.
    Saudosa Catedral

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  11. Ricardo,
    O que mais admiro na tua escrita é a capacidade de desenvolveres com talento e humor os temas mais diversos do quotidiano de todos nós.

    Quanto à antiga catedral ela representa um pedaço da minha vida. As loucuras que eu cometi, os quilómetros que eu percorri, a fome que eu passei, os confrontos entre adeptos, a chuva que me ensopou os ossos, as desilusões, as alegrias… tudo para ver o meu Benfica ao vivo! Agora tudo é diferente. Estranhamente mais cómodo mas menos apelativo à emoção. Guardo a antiga Catedral no meu coração. Sei que nunca vou amar esta como amei a outra. Coisas que não se explicam.

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  12. Há mais um aspecto a juntar à imponência e o mistério do betão, que era a ausência de lugares marcados. Eu comecei a ir à Luz com 3 anos, ainda a bancada Norte pertencia aos sócios. Era ali, no segundo anel, bem por trás da baliza, que via o Maniche, o Nene, o Shéu, o Águas, o Dimantino, and so on, a festejar os seus golos. Era ali, ao sol, que pintava uns livros manhosos ou, mais tarde, lia as minhas bandas desenhadas enquanto o meu pai metia a conversa em dia com os outros 20 malucos que chegavam duas horas antes para se sentar nos centímetros de cimento do costume. Essa ritualização perdeu-se. Agora entramos 5 minutos antes, se for preciso. Antes, chegar a meia hora do jogo obrigava a uma luta titânica para aceder ao terceiro anel e encontrar lugar. E às vezes andávamos de rampa em rampa, porque um segurança mais zeloso achava que a bancada já estava excessivamente lotada. Lembro-me da eliminatória do Parma, subir as escadarias e ficar dez minutos à boca do túnel! Quando finalmente consegui meter os olhos na relva, já o Isaías rematava para golo! O passe do Rui Costa só o vi no dia seguinte! :)

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  13. ...E hoje encontro-me aqui, à tua frente , a ler o teu blogue com um copo de vinho na mão;)-"terras d'el rei" para que se saiba- enquanto o sr trata do jantar (está a cortar batatas...ohhh tao queriiidoooo;)), sentada na tua poltrona;)(lol)para elogiar-te também(pois é...sou obrigada a concordar com os restantes comentários ;)Apesar de n ser uma leitora assídua e sim, deveria sê-lo,confesso...apesar de n mostrar muito e não dizê-lo, sinto-me muito orgulhosa de ter ao meu lado alguém como tu (pela pessoa que és obviamente,e, claro,pela tua escrita também!(ok...isto já está a ficar demasiado piegas lol...será vergonhoso para este blog !ai!!:/Parabéns pelo blog é o que tenho a dizer-te!da namorada desnaturada que não frequenta lá muito o blog:/// (lol) Bj!!!

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  14. Olha, pois é, Terras d´el Rey, está aqui ao meu lado.

    Isto é estranho. Tu estás aqui ao lado a beber do mesmo vinho, além da cerveja e do uísque e eu estou a comentar um comentário teu.

    Eh pá, mas tinha de ser. Se não comentasse, levava nas orelhas e lá ia eu para uma associação de apoio à vítima. Agora vou desligar isto e voltar ao vinho contigo.

    O blogue fecha a loja para fim-de-semana e vitória do Benfica.

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  15. Ok, o vinho subiu. A conta era a tua.

    Bahahahha

    Agora é que é. Bom fim-de-semana.

    Eu vou. Abbey Road à espera...

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Vai ao Estádio, larga a internet.