A tarde estava triste. Não chorava mas envolvia-nos com aquele bafo frio de nuvens densas, a que é costume chamar-se de "um dia de merda". As pessoas, no entanto, pareciam não estar preocupadas. Afinal, o dia era de Debate quinzenal! Logo muito cedo começaram a chegar à Praça de São Bento os costumeiros vendedores de cachecóis com as famosas imagens da Assembleia e as bandeiras a vermelho, com a cara do melhor jogador da casa: José Sócrates, exímio driblador de questões incómodas e maestro na arte de, no semi-círculo de discussão, falar mais no que as equipas adversárias não fizeram no passado do que debater os assuntos da sua própria equipa - um génio com a gravata ao colarinho.
Confesso que estava nervoso. Era a minha primeira experiência na "Casa da Democracia" e tinha sérias dúvidas sobre as prestações de António Pereira Coelho e de Ribeiro Cristóvão. Sobre o primeiro, a minha inquietação maior residia em saber se seria capaz de servir de tampão às transições económicas a que, muito provavelmente, estaria sujeito por parte da bancada adversária; já sobre o segundo, questionava-me se seria homem capaz de funcionar, em apoio, com profundidade na hora de assistir o nosso grande goleador. Para acabar com o nervosismo, eu e uns amigos, empolgados pela multidão eufórica e por uma sede indesmentível, estacionámos ao pé de uma barraca de cerveja e ali ficámos, em alegre cavaqueira, até perto do início da contenda. Estava um ambiente algo conturbado: viam-se, ao longe, os primeiros adeptos socialistas e, não fosse a imediata intervenção da autoridade, teríamos saído dali todos à batatada - continuo a dizer que as Juventudes em nada dignificam a Política, são bandos de delinquentes sempre em busca de motivos para a violência. É certo que apoiam, que gritam muito, que têm barba e que têm megafones, é certo também que, na arte da demagogia e ignorância mais suja e mais baixa, eles são peritos - afinal, estão bem instruídos desde muito novos, logo que entram nas faculdades. Por mim, deixava a política entregue aos adeptos, apenas e tão-somente aos adeptos apaixonados pelas causas; os que se sentam nas tribunas do Parlamento, não gritam e são civilizados.
Quando faltava meia-hora para o debate, acabámos a cerveja de um trago e dirigimo-nos para a entrada. Como tínhamos bilhete, estávamos tranquilos e não havia motivos para preocupações, certo? Errado. Hoje em dia, já não se pode ir à política sem que sejamos apalpados por todos os lados e olhados com descrença por energúmenos de coletes fluorescentes, como se fôssemos alguns criminosos que decidiram ir ver política, sem outro intuito que a violência gratuita. Senti-me indignado! Para além da normal apalpadela, ainda me retiraram dos bolsos um isqueiro que o PSD de Abrantes me tinha dado há mais de 10 anos, o mp3 que tinha uma música cubana sobre o "Comandante" e a fita no cabelo por revelar - nas palavras do energúmeno e cito - "razões suficientes para uma batalha campal, devido à cor alaranjada". Bom, lá entrei sem isqueiro, sem mp3 e com o cabelo desgrenhado, na esperança, porém, que o debate valesse a pena e pudesse esquecer mais uma atribulada entrada no semi-círculo do poder.
Chegados, o mesmo de sempre: alguém estava sentado na minha cadeira. Blá, blá, blá, "o seu lugar é na tribuna em cima do Luís Fazenda", "não é nada, é perto do Portas", "é sim, veja, A 22, lugar 18, tribuna bloquista". Lá saiu o barbudo, com cara de quem não comia, não dormia e não f... ingia há uns bons meses e eu, finalmente, pude encostar-me e esperar o espectáculo. Meus amigos, e que deprimente foi! Sócrates, na zona central, felizmente não fez um único passe a rasgar a bancada da direita; sempre em movimentos circulares, atirava para trás, grunhia para a frente, voltava a meter a bola no passado, chegava-se à entrada do semi-círculo direito mas logo recuava e voltava a empatar o jogo. Do lado da nossa equipa, um jogo de cintura assinalável; muita táctica, muito empolgamento, muito sorriso irónico, mas política... nem vê-la. Parecia que nenhuma das duas equipas queria ganhar. Absurdo!
O mais interessante da contenda foi observar como anda o "Sistema" por estes dias em Portugal. Meus amigos, a arbitragem foi escandalosa, do princípio ao fim! Jaime Gama, que já me estava atravessado desde aquela ida a um mercado, em que não beijou nenhuma das peixeiras, foi igual a si mesmo: gritante desigualdade de critérios, autoritário em demasia com os nossos e caseirinho como sempre. Há um lance no debate que não deixa dúvidas a ninguém: quando Pedro Santana Lopes se preparava para rematar contra a baliza de Manuel Pinho, atirando-lhe com um remate em "os portugueses não têm dinheiro para comer", aparece Pedro Silva Pereira, já na primeira bancada à entrada para o átrio, que ceifa o nosso líder parlamentar com um "não diga mentiras, pá!". Punições? Nada! Nem um "Ministro da Presidência, estamos na Assembleia da República", quanto mais um "Pedro Silva Pereira, faça o favor de abandonar o Parlamento e ir tomar banho mais cedo". Escandaloso! Mais tarde no debate, já perto do fim, outro lance em que Jaime Gama, arguido no processo "Apito socrático", mostrou toda a sua tendência para a equipa da casa: estava Alberto Martins a gastar tempo, tecendo loas infinitas ao goleador José Sócrates, quando do seu lado direito um seu companheiro de bancada se vira e diz: "muito bem, muito bem", aplaudindo, meus amigos, aplaudindo! O que fez Jaime Gama? Fingiu não ouvir nada e foi complacente: "faça o favor de terminar, deputado Alberto Martins". Se isto não é um roubo de Parlamento, então não sei o que é! Muito triste. Assim não vale a pena vir à política. Se é para isto que sofremos e gastamos dinheiro, quando podíamos ter ficado em casa, confortavelmente a ver o debate pela televisão, então não vale a pena.
Quando acabou o debate, ficámos algum tempo a olhar no vazio - com aquela cara anestesiada de quem acaba de ver um debate de merda e não ganhou - e à espera que os adeptos da casa saíssem. Para meu espanto vejo, no interior do semi-círculo, Sócrates e Santos Silva numa galhofeira pegada sacarem de um cigarro e começarem a fumar em pleno terreno de debate. Eu, que tinha ficado sem isqueiro e farto de andar a fumar ao frio, sempre que me decido a sair de casa e quero - veja-se a heresia - ir comer fora, questionei o segurança que, com um ar sábio e algo arrogante, me respondeu: "Devem ter fretado a Assembleia". E eu tudo bem.
Epá, no mínimo brilhante! Muito bom mesmo, a descrição está "mesmo lá". Nota-se que tens o hábito de ires à... política. Somos dois ;)
ResponderEliminarCheers!
Tal como o amigo Mago disse, no minimo brilhante... de Benfiquista!!
ResponderEliminarAbraço amigo Ricardo
Simplesmente G-E-N-I-A-L!!!
ResponderEliminarValeu a pena esperar tanto tempo por um novo 'post'!! Clap clap clap!!
Saudações GLORIOSAS
Fantástico, Ricardo! Se não tivesse mãos delicadas, batia palmas até fazer sangue. Parabéns pelo texto...muito, muito bom!
ResponderEliminarEh pá, muito bem. Uma salva de palmas para vocês todos! Brilhantes comentários.
ResponderEliminarSó uma coisa: eu sei que dei a cada um de vossas senhorias um generoso cheque de 500 euros por comentário mas não precisam de entrar em exageros. Onde escrevem "brilhante" podem escrever "bom" ou "jeitosinho". É que assim a malta desconfia!
Eu sei que não sou muito dotado, mas ou eu não percebi nada ou tu enganaste-te no blog....
ResponderEliminarRicardo, deste aos outros um cheque de 500 euros?! Dado que não recebi nada, acho que se impunha (e eu desde já aceito) o pagamento dessa quantia à minha ilustre pessoa numa qualquer roulotte ao pé do Estádio da Luz.
ResponderEliminarEm imperiais, de preferência. Ainda que se possa intercalar com uma ou outra bifana, de tempos a tempos.
Realmente não és muito dotado, Anónimo. Podes comprar um cérebro na Amazon. Ouvi dizer que estão a bom preço...
ResponderEliminarVoltei, desta vez depois de receber um cheque de 1500€, para dizer que não há exagero nenhum nos comentários que se leram aqui. Repito que está genial e acrescento brilhante!! =)
ResponderEliminarSaudações Benfiquistas
Mago, essa ideia parece ter pernas para andar. Sempre preferi pagar comentários bajuladores em bifanas e bujas do que em cash.
ResponderEliminarEstá resolvido o problema:)
Lua,
ResponderEliminardecidi, como disse ao mago, não pagar mais em dinero. Precisas de alguma manta boliviana ou assim?
Este já está pago, não devolvo o cheque mas para a próxima pode ser em garrafas de Moet lol =)
ResponderEliminarEh pá, tem lá calma que esta tasca ainda não atingiu esse nível de excelência!
ResponderEliminarMine, temos; vinho a martelo também; um ou outro favaios, de vez em quando e pouco mais.
Essa do Moet não sei não, Luz. Acho que é melhor contentares-te com uma grade delas. :)
Sem dúvida, um artigo BRILHANTE
ResponderEliminarsaudações
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Ricardo,
ResponderEliminarO meu nível de exigência para contigo é extremamente elevado. A ideia inicial é boa mas confesso que esperava mais no desenvolvimento subsequente.
Eh pá, alguém a dizer menos bem? Esqueci-me de fazer o pagamento a tempo e horas.
ResponderEliminarObrigado pela sinceridade, Sabino. E concordo com a crítica. O texto poderia ter sido desenvolvido muito além da loucura.
Volta sempre.