Ninguém
quer saber do relvado para nada. Fica para ali atirado verde fluorescente - excepcionalmente,
no caso do Sporting, areal da praia de Carcavelos misturada com a erva do Parque
dos Poetas – para uma solidão de espera e queimaduras de holofotes. Ninguém
quer saber se o relvado tomou os medicamentos, se se alimentou decentemente
durante o dia, se fez a sua corridinha matinal, se viu os filhos, se foi ao
ioga.
As
pessoas entram no estádio já todas com muita pressa e pouco tempo. Aquela luz
que incide directamente no corpo da relva será saudável ou, oncologicamente,
estaremos perante mais um assédio e agressão? Se não fossem os tratadores e os
atletas que a meio do jogo, num lance mais emotivo, compõem tartes relvadas que
se desorientaram, alguém alguma vez se preocupa em obsequiar um toque prostático
ao relvado?
E, no
entanto, reluz, rebrilha, reacende-se. Lembro-me disto: percorrer, do carro até
entrar nas bancadas, dois a três quilómetros de benfiquismo aos socalcos:
ficávamos por ali, avançávamos, recuávamos, abrigávamo-nos nas esteiras de
tascas inventadas de bancos de madeira e nódoas circulares de copos de vinho
que se iam acumulando fazendo símbolos enviesados dos Jogos Olímpicos. Tudo era
Benfica e, mesmo com Trina de Laranja, embriagava-me.
Havia
muitos fumos libertados por fogueiras, charutos e febras; odores de coisas ao
lume, de perfumes baratos, de esperança. Ouviam-se vozes, tantas e todas em
cima umas das outras, de gente feliz ou quase feliz ou ainda assim feliz que
compensava mágoas na visão das luzes de um estádio que crepitava lá ao fundo.
Pediam-se doses industriais de comida, bebia-se muito, conversava-se mais e
ainda não havia rulotes nem televisões em rulotes que explorassem os ângulos
analíticos do pré-jogo. Era mais do sangue e do vinho e de uma família sentada
ao longo de um banco corrido, ensinando o Benfica a uns e outros.
Houve
um tempo em que as repetições só existiam no final do jogo e nunca onde
comíamos; víamos os lances polémicos através dos vidros dos autocarros dos que
vinham de longe: Régua, Porto, Coimbra, Chaves, Évora, Beja, Figueira da Foz, Portimão,
Cadaval, Viana do Castelo, Torres Novas, Portalegre, Castelo Branco, Santarém,
Boticas, Guimarães, Elvas, Mértola e tantos outros sítios condensados por
aldeias que se transportavam até às cidades.
Terá
sido penálti? Não discutíamos foras-de-jogo. Interessava mais o golo ou os
vários golos que o jogo tinha dado. E então, de entremeada e orgulho e beleza
nas mãos, pedíamos aos que estavam dentro dos autocarros que se baixassem para
vermos se de facto aquilo tinha sido um golo tão bom quanto nos pareceu. E era
ainda melhor. Aumentávamos o golo ao seu expoente máximo: eram dois golos! E depois
três golos! E eram golos que nunca mais acabavam, naquela lama de onde saltávamos
agarrados ao autocarro a bater com os pés e com as cabeças e com os litros de vinho
todos a saltarem com os adeptos que, lá dentro, festejavam com cigarros e
cachecóis ao rubro a baterem nas luzinhas e nos ares-condicionados.
O golo
existia dentro do estádio e propagava-se por nós e entre nós por mais umas horas:
falávamos dele, moldávamos-lhe as faces até ao momento em que, por mais
repetições, já ninguém sabia se o golo tinha sido do Magnusson ou se tínhamos
sido nós que, num acesso de demência, acabámos em frente à baliza e
finalizámos. Era assim, junto às paredes dos autocarros que diziam nomes
estranhos de empresas regionais de viação: a gente espreitava o golo por entre
cabeças de mães de família que procuravam recato dentro da viatura, abria-se uma
cratera de esperança de que o golo viesse a ser diferente – algo que mudasse
desde o apito final até àquele momento, queríamos novidade -, baixávamos o
corpo, a espinha flectia-se, os joelhos flectiam-se, os pés enterravam-se nos baixios
da lama, o Gabriel Alves, o Rui Tovar, o Miguel Prates, o Mário Zambujal, o
Ribeiro Cristóvão, um deles, já não sei qual nem interessa, começava o resumido
relato e nós ali, num silêncio sepulcral mirando as televisões de autocarros à
espera de mais um golo que já tinha acontecido.
E a
sensação – maravilhosa sensação de ver coisas a passarem na televisão que vimos
ao vivo e a cores e a cheiros e sons e nomes e vidas – de estar quase a chegar
aquele impulso supremo. O golo vinha, o golo estava quase a vir, e depois o
grito, os abraços, os beijos, as entremeadas e as cervejas no ar, tudo doido
com um golo em repetição, de dentro do autocarro batiam com força nos vidros,
beijavam os cachecóis, levavam os fiozinhos de ouro à mão, agradeciam aos céus
por uma fresta em diagonal que se abria lá dentro e cá fora a mesma coisa:
gente batendo com força nos pneus e nas letras mal pintadas e mal coladas a
dizer TorrExpresso ou alguma coisa parecida com esta que não se pode prometer,
visto que o molho das bifanas cortou metade das tintas e colas e adereços.
O golo, aquele golo e aquele momento, que apesar
de serem tantos são sempre únicos e nunca se repetem, aconteceram tantas vezes
naquele relvado que víamos descendo rampas e depois escadas ou subindo escadas
e rampas. O coração acalmava quando os olhos viam o relvado a esperar, sempre a
esperar, a entrada dos artistas e as emoções que estavam quase a acontecer. Um
golo do Benfica. Um golo do Benfica. Um golo do Benfica. Não há troika que
resista a um golo do Benfica.
Absolutamente fenomenal.
ResponderEliminarQue coisa bonita, meu deus.
ResponderEliminarÉ sempre um prazer ler estes "contos" do Ricardo. Pedaços de vida que nos insuflas
ResponderEliminarNão me considero velho mas fico feliz por ainda ter vivido esses tempos tão bem descritos neste post. Esses tempos não voltam mais, as coisas mudaram e o que foi não volta a ser. Fica a memória de um passado não tão distante, de outro futebol, de outra maneira de viver o desporto, de outro país e de outro Benfica...
ResponderEliminarTudo pode voltar a ser como "dantes" basta querermos... é só!
ResponderEliminarAbraço.