Ali, onde agora vive um senhor mamarracho de nome Colombo, era um baldio de terras aos solavancos, couves, armaduras de príncipes antigos e casas da idade do Fernando Pessoa. Ali, onde a esta hora senhoras elegantes e meninas petulantes encontram mais uma fantástica bugiganga para encher a vaidade dos quartos e salas de estar, foi, um dia, um parque arcaico de estacionamento, um caminho tortuoso até à catedral e uma enorme sala de repasto benfiquista. Ao ar livre, como tinha de ser.
O carro estacionava-se a 2 quilómetros do Estádio e a partir daí punham-se galochas e enfrentava-se o lamaçal. Antes de chegarmos ao repasto, deliciava-nos todo aquele benfiquismo em forma de gente: grupos de 10, 15 pessoas faziam círculos imperfeitos em volta de uma fogueira, de um fogareiro e de uma panelona digna de reis que no seu interior aquecia e amparava um bruto cozido à portuguesa ou, para os mais sensíveis às vicissitudes das transformações gástricas, um belo de um caldo verde, recheadinho com chouriço do melhor que podia haver; para beber, tinto, que era a cor e bebida naturais de quem, por dentro, levava acesa a chama imensa.
Normalmente, eram homens, pais e filhos, poucas mulheres e ainda menos filhas. No entanto, a equipa feminina de cada família tinha também o seu ofício, visto que vinham das mãos delas os repastos que tanto aconchegavam o estômago e o coração dos seus mais-que-tudo. A fome e a sede, ali, naquele sítio onde hoje ardem galinhas de Kentucky e carnes do Sr. MacDonald, não eram mais do que a medida certa para o impulso de noites de glória. Começava com o ritual de comer e beber; acabava em goles de golos.
Para quem não levava metade da casa atrás, esta era uma visão que aproximava e apaixonava e servia de entrada ao que viria a ser a refeição, sentados que ficávamos em banquinhos corridos de madeira rodeando as casas de repasto, quase sempre entregues a famílias inteiras. O ritual era simples: fazia-se um rectângulo de balcões, em volta bancos para os benfiquistas não comerem de pé e lá dentro era uma festa de cerveja, vinho e cheiros de carnes com muita gordura. Para os meninos, trina de laranja, para os pais, vinho em barda, que a noite era uma criança. Nos entretantos, enquanto se trinchavam pedaços de entremeada, febras e as sopas iam ao lume, e regados, bem regados, a cerveja, a tinto, a branco e, para os mais friorentos, a abafadinho, discutiam-se onzes, dizia-se mal do treinador (sim, já na altura acontecia) e ansiava-se pela hora da visão gloriosa de um relvado iluminado por 4 focos de luz. Os pais faziam a sua pedagogia, perguntando aos filhos o nome dos 11 heróis que iriam entrar em campo, os filhos acertavam em 3 ou 4 jogadores mais conhecidos e de tempos a tempos até aparecia um que falava no nome de um jogador de um rival nacional. O pai não gostava, batia com o copo com força na madeira e gritava: "esse é lagarto, filho!" e o filho, que nunca se tinha apercebido de que os homens tinham a capacidade de se metamorfosear em répteis, bebia mais um gole de trina enquanto dizia para dentro que nunca mais abria a boca para dizer o nome daquele jogador.
E o mais bonito de tudo era quando, na mesma mesa, se juntavam avô, pai e filho. E todos eles, ali sentados em redor de um objectivo, apesar das idades, a sentirem o mesmo: a pulsação acelerada, a ansiedade, o nervosismo, a paixão. Todos eles com o coração da mesma idade.
26 comentários:
Meu Caro amigo,
Obrigado por este excelente post, que me fez recuar e recordar os tempos em que a única dúvida que havia era por quantos ganharia o SLB....até parece que estou a sentir o cheiro da bela bifana às vezes cheia de nervo que mal dava para trincar, o coirato tantas vezes com pêlos e a (mal) entremeada com tanta gordura...eheheh...as centenas de piqueniques com a bela feijoada, o belo do cozido...enfim....de tudo se comia e de tudo se bebia e nada fazia mal a não ser o provocar de uma ou outra dor de barriga que passava no dia seguinte...
grandes tardes e grandes noites que o meu pai me proporcionou ao levar-me sempre com ele para a Catedral...aquele ambiente fantástico que ia testemunhando na longa caminhada desde a Pontinha até ao estádio...
Fantástico, bons tempos e grande benfiquismo!!
VIVA O SL BENFICA SEMPRE
Nelson Carvalho
Ricardo, OBRIGADO por nestes textos me fazeres relembrar vários aspectos do que era a vida de adepto benfiquista há uns anos.
OBRIGADO!
Abraço a todos!
Grande, grande texto.
Lembro-me do senhor colombo ser um buraco enorme e estar assim durante anos. Dizia-se que era para um hipermercado continente.
No seu texto faz referência aos tempos em que era criança, o modo de estar na vida era outro.
A história actual é a comunhão do Benfiquismo à porta da pizza hut, mac, kfc, etc. É mais clean e as mulheres agradecem :))
Raios! Até as roulottes estão a acabar.
Abraços
..
Sublime.
Obrigado ricardo
Abraço Benfiquista
Porra oh Ricardo, não tenho grandes adjectivos para um texto destes. Arrepia, e acho que isso é "adjectivo" suficiente para me fazer entender.
Tenho saudades desses tempos, não só pelo que o Benfica jogava (e era) nessa altura, mas por todo este convívio que tão bem descreves e pela forma mais rústica, menos "tecnológica", com que viviamos - e não só no mundo da bola. Haviamos de combinar mesmo aí uma bifana e umas quantas minis na Zeca Diabo (antes que como diz o Sou de um Clube Lutador - excelente nick! - elas acabem mesmo).
Abraço.
Maestro disse...
"Sublime.
Obrigado ricardo
Abraço Benfiquista"
Subscrevo.
Obrigado eu, Nelson, por teres completado o texto com mais uns lamirés de memória benfiquista.
Estes textos, além de procurarem reavivar hábitos que todos tínhamos, pretendem de quem os leia e queira comentar isso mesmo: uma viagem às memórias.
Volta sempre.
João, andas desaparecido deste antro de promiscuidade e benfiquismo! :)
Sou de um Clube Lutador (estou com o Mago, esse nick é... melhor!),
gostei especialmente da passagem: "É mais clean e as mulheres agradecem". De facto, aquilo era para aventureiros. Tenho cá para mim que uma ida ao KFC lhes agrada mais do que encherem as botas de terra e os vestidos de cheiro a fritos. Mas isto sou eu... :)
Abraço, Maestro!
Mago,
Ando a pensar num jantar do Ontem... para o final de época. De qualquer forma, antes disso, claro que podemos combinar umas bifanas e umas (muitas) minis. Pode ser já num dos próximos jogos na Luz. Abraço!
E acho que o Sérgio (e Roger e Americano) são gajos para achar graça à ideia. O Americano, então, só à conta do Scolari, já me deve dois jantares. Mesmo longe, o Scolari continua a dar-me razão, é do caralho!
Lindo!
Não cheguei a ir à Luz sem haver Colombo, tenho pena. Quer dizer, fisicamente nunca tinha ido, mas hoje estive lá ao ler o teu texto. Parabéns.
Quanto ao jantar... É óbvio que acho graça à ideia. Vamos marcar isso.
Abraços
Fico à espera desse jantar do Ontem... para final da época então. Mas sim, de qualquer maneira pode-se tentar combinar essa tal bifana acompanhada com minis para o próximo jogo na Luz. Mais próximo da data volto a lembrar-te, e a quem se quiser juntar obviamente - deixei também um convite parecido no GVAB, a ver se alguém pega nele...
Abraço.
O Scolas vale os 2 jantares :p
Também tenho pena que não tenhas vivido isto, Roger. És daqueles gajos que ias viver isso ao máximo e guardar memórias para uns textos :)
Mago,
óptima ideia! Juntar o GVAB com o Ontem...! Parece-me que somos da mesma família ideológica.
Fica, então, essa petiscada marcada. Depois falamos melhor nisso.
Americano, se quiseres pagas-me uma bifana e umas minis, vá, para não serem dois jantares, que isso ainda sai caro:)
Sim senhor, este texto tem tudo: Benfica, Estádio da Luz, sentimentos primários, o seu qb se adjectivos, referências rústicas da gastronomia local e aqui ou acoli uma marca portuguesa menos relembrada. Um sucesso. A receita é fácil e contenta-nos. Continua e parabéns!
Lembro-me destes tempos... não que tenha ido ao futebol, que a malta não nadava em dinheiro e como era cá do norte, não havia pai que se deixasse convencer a "perder" um dia e muito dinheiro para ir à luz... mas lembro-me, sei como era. Tive a felicidade de ir a esse estádio 2 únicas vezes. Uma para ver o basket (contra o Illiabum, o clube da minha terra - nos tempos em que começava a despontar o "Dream-Team" - sim, que nós fomos os primeiros a ter um Dream-Team... só que na altura não se chamava assim). A outra, mais tarde, já com o Colombo ali ao lado, para ver a selecção... passados poucos dias começaram as demolições, e o Estádio entrou para a história.
Mas recuando um pouco, acabo por ter outras memórias... memórias dos tempos do meu meu pai (que estava a cumprir o Serviço Militar em Lx), e que contava coisas deliciosas, como por exemplo, o facto de no Célebre jogo da moeda ao ar, com o Celtic, que entrou no estádio com a sensação que nem conseguia por os pés no chão, tanta era a gente que se aglomerava para entrar... e o que essa história sempre me arrepiou. Isso era o Benfica E depois dessas, mas também desses tempos, havia outras, histórias de vitórias... de grandes golos e grandes jogadas... histórias de um outro Dream-Team (sim, que nós também tivemos um Dream-Team - ups, esperem... este já era outro!).
Hoje, que a história é diferente e não se faz de tantas vitórias, que o Estádio é mais moderno mas não tem "aquilo" que o outro tinha (a unica coisa em comum, é que também ainda não conheço este), que não temos Dream-Teams e que o meu pai já cá não está para contar estas histórias deliciosas, farto-me de dar voltas à cabeça para tentar perceber como raio é que vou conseguir convencer a minha filha que só tem 20 meses, a amar o Benfica como nós amamos...
FCBynight,
Sim senhor, o teu comentário tem tudo: crítica pela crítica, ironia acéfala, sentimentos primários, o seu qb de parvo, referências rústicas de atraso mental e aqui ou acoli uma tendência portuguesa para dizer mal sem fundamentar a opinião. Um sucesso. A receita é fácil e contenta os boçais. Continua e parabéns!
Pedro,
Essa Dream Team era de outra galáxia! Pode ser que, com o impulso deste ano, em que a equipa tem estado perfeita (só vitórias até ao momento), possamos readquirir o domínio no basquetebol.
Quanto à tua filha, podes ficar descansado: quando ela começar a ver futebol, já o Benfica voltou a dominar o futebol português :)
Sublime, soberbo, fantástico!!
Só tenho pena que na história não estivessem mais mulheres! hehehehe
Saudações Gloriosíssimas
Adorei o texto!*************
Esquecestes-te dos concursos de arrotos... havia quem conseguisse com um único arroito dizer o alfabeto inteiro... e com as letras inglesas e tudo! O w tinha uma sonoridade especial...
luas, as mulheres ficavam no carro, a fazer camisolas para os maridos levarem à bola.
Excelente post Ricardo! Faz-me lembrar os bons velhos tempos em que ia ao estádio da Luz ver o Benfica ganhar sem qualquer oposição. Os tempos mudaram...
"havia quem conseguisse com um único arroito dizer o alfabeto inteiro... e com as letras inglesas e tudo! O w tinha uma sonoridade especial..."
LOOOOOOOOOOOOL
amimnaovistedecerteza- está para nascer o homem que em dia de jogo deixe UMA BENFIQUISTA no carro a fazer o que quer que seja. =)
FA-BU-LO-SO. Não me ocorre escrever mais nada a um dos posts mais completos de benfiquismo que me lembro de ler. Parabéns Ricardo.
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