O penálti falhado por Jara lembrou-me um texto que escrevi há uns tempos sobre uma questão que frequenta o imaginário e as discussões dos adeptos. O que é um penálti bem marcado?
Em resposta, teremos várias visões. Logo na primeira fila, aparecerão os pragmáticos: «é o penálti que dá golo». De seguida, os prestidigitadores: «é o que engana o guarda-redes». Os estetas: «bola para um lado, guardião para o outro». Os cruéis: «o que humilha o adversário». Os estrategas: «o que transmite a ideia de ir para um canto e vai para o lado contrário». Os cavaleiros: «o que tem uma paradinha a meio da corrida». Os bélicos: «o que faz explodir as redes!». Os emotivos: «o que faz levantar o estádio».
Na verdade, como em quase todos os momentos do jogo, o futebol é para cada adepto um mundo muito diferente do dos restantes e as teorias sobre ele tendem para mais infinito. Há em cada um de nós um especialista catedrático nesta arte; temos todos o conhecimento científico - porque empírico - sobre quais as melhores acções ao longo de uma partida de futebol. Tivesse o treinador a nossa clarividência e a nossa equipa ganharia sempre por 20-0 com mais 20 golos falhados porque os jogadores, já se sabe, não possuem as nossas qualidades inatas para a prática da modalidade.
Humildemente, deixarei o meu contributo: um penálti bem marcado é aquele que, por maior qualidade que o guarda-redes tenha, por mais alto, elástico, atlético, instintivo que o guardião seja, fará com que a bola entre sempre na baliza. Dito de outra forma: o penálti bem marcado é o penálti que encontra a sua janela para a baliza num lugar em que é impossível ao adversário chegar.
Pode ser, na perfeição, uma bola batida a um dos cantos superiores da baliza - esse é o penálti-fenómeno, o penálti-pérola, o Rei dos penalties. É o penálti que traça uma linha horizontal e vertical tão perfeita que cria a diagonal eterna. Lá «onde a coruja dorme» é o sítio do milagre e da explosão do adepto. Esteticamente, é admirável; tecnicamente, soberbo; psicologicamente, devastador para o guarda-redes. Mas há outras caminhos por onde marcar golo mantendo o essencial do princípio «penálti bem marcado»: bola batida, rasteira, em força, a um dos cantos da baliza; bola batida para as malhas laterais de um dos lados, a meia-altura; bola, rasteira, meia-altura ou alta, que ou apanhe a lateral interna ou o poste pelo lado de dentro, inevitavelmente entrando. Toda a bola que for batida com estes princípios dará golo. É impossível a um guarda-redes defender um esférico que vá puxado, em força, a um dos lados da baliza. E isso, por ser inevitavelmente golo, é um penálti bem marcado.
O que são penalties mal marcados? São todos os outros. Um penálti «à Panenka» é um penálti mal marcado, por mais arte que o jogador tenha em fazer crer ao guarda-redes que vai atirar para um canto e não para o centro, em delicadeza - é bonito, não nego, mas não cumpre o requisito de tornar impossível ao guardião a sua defesa. Basta que fique ao centro para defender a bola; basta que, indo para um dos lados, consiga com os pés tocar no esférico. Ou seja, este é um penálti que não depende apenas e só da qualidade do remate, mas de vários outros elementos: posicionamento do guarda-redes; capacidade do guardião em antecipar a ideia do marcador; sorte do guarda-redes que, mesmo atirando-se para um canto, pode tocar com as pernas ou pés na bola. Pelos mesmos motivos (não dependerem apenas da qualidade do executante mas de vários outros factores), todos os penalties que fizerem a bola entrar num lugar da baliza a que o guarda-redes pode chegar são maus penalties, são penalties com gripe, são anti-penalties.
E isto é independente de ser golo ou não. A grande maioria dos penalties marcados em futebol é executada de forma deficiente. Pode a bola entrar ou não, é irrelevante para a análise. Pergunta-se é: «podia o guardião chegar àquela bola?». Quase sempre, sim. Logo, o executante não fez aquilo que devia.
A função de um treinador tem de passar por escolher o jogador que marca mais vezes o penálti bem marcado, o tal impossível de ser defendido, e não aquele que nos treinos mete mais vezes a bola na baliza porque esse, em competição, falhará inevitavelmente mais do que aquele que nos treinos mete, em 10, 7 bolas impossíveis de defender, 2 à trave e 1 para fora. O que marca, por exemplo, 8 em 10, mas fá-lo de forma deficiente, estará sujeito, em jogo, a vários outros imponderáveis elementos que o forçarão a uma estatística mais baixa se analisarmos a sua produção no tempo - digamos, por estudo, 5 anos.
No Benfica, o marcador oficial é Cardozo. O paraguaio já foi um marcador exímio. Nos dois primeiros anos no clube, batia a bola em força para um dos lados da baliza, muitas vezes entrando a mesma pelas malhas laterais interiores. Ou seja, marcava invariavelmente penalties bem marcados. Por alguma razão (talvez de ordem estética ou por algum mau conselho de alguém), começou a marcar muitas vezes em jeito, mais para o centro da baliza, com menos força, menos colocação, menos assertividade. Com isso baixou os níveis de eficácia, o que é evidente e expectável, já que deixou de colocar a ênfase do penálti apenas e só na qualidade do remate mas a abriu a outros factores: qualidade do guarda-redes, azar, instinto do guardião. Cardozo passou a bater bolas que, dando golo ou não, podiam ser defendidas pelo adversário. E com isso deixou de ser exímio marcador para passar a ser um marcador com boa média, mas longe da eficácia dos primeiros tempos.
Compete a Jesus ou encontrar no plantel quem saiba marcar penalties bem marcados ou optar por aquele que, quase sempre marcando penalties mal marcados, tem a melhor estatística. Ou seja, passamos do lado científico para o místico-divino. Logo, sujeitos à sorte, ao destino e à religião. Contra o Ajax, nem remate houve. Foi um passálti.