segunda-feira, 14 de março de 2011

O Spectrum não ia ao Estádio

No outro dia li num blogue, acho que no Céu Encarnado,  alguém, acho que o Éter, dar a ideia de meter música decente no Estádio nos intervalos dos jogos. Uma boa ideia, sem dúvida. Dizia o escriba, acho que o Éter, acho que no Céu Encarnado, que uns Nirvana viriam sempre a jeito para embalar as papoilas para a vitória. Nisto, aparece um comentador que saca esta frase: "o meu Pai de certeza que ia gostar muito dessa ideia". Um gajo sente-se velho com estas coisas. Ainda não tinha posto no chip que é possível haver comentadores de blogues cujos pais ouviam Nirvana. É que eu ouvia Nirvana e não me vejo com idade suficiente para ter filhos que comentem em blogues. Tenho 29 anos, ok, podia ter um bípede com 10 ou, se quisermos dar mais dramatismo à coisa, se eu tivesse incorrido na paternidade precoce, ter um rebento com os seus 13, 14 anos a destilar o seu benfiquismo por essas páginas virtuais. Mas - deixem-me acreditar - eu ainda me acho o portador da juventude, não o Pai que é referenciado pelo filho em blogues benfiquistas. Até quando? Bom, não corro riscos imediatos porque não tenho filhos mas imaginando que os terei daqui a 1, 2 anos, quanto tempo durará o auto-convencimento juvenil em que estou instalado? Como as coisas são, provavelmente o gajo aos 5 anos já anda aí a botar postas de pescada sobre tácticas em triângulos invertidos ou a barafustar sobre os Proenças e os Benquerenças (sim, porque também esses têm filhos que, no sistema actual, vão prolongando o seu, e principalmente nosso, nojo por aí). Não faltará muito para haver aí um Ricardinho a comentar "pois é, grande ideia essa de meter Smashing Pumpkins nos intervalos dos jogos, os velhotes vão gostar". Não sei. Há qualquer coisa nisto que me incomoda. Um peso das horas em cima. O relógio a segundear, a minutar desenfrado. A minetar com a sua linguinha cíclica e circular e o tempo a embalar-me para fora de mim. Lembro-me de ser novo e sei que sou velho porque tenho memórias de coisas absurdas que, ditas agora, parecem fazer parte de um mundo ancestral, estranho, estranhíssimo a quem as ouve agora, enquanto mexe no Ipad ou vai para a sanita com o portátil atrás. No meu tempo (que expressão de velho), um computador era uma coisa religiosa, ao mesmo tempo um sórdido anunciar da modernidade e um altar sagrado, fechado num quarto solitário, ali posto, porque enorme, para os que se aventuravam à descoberta. Ou antes do trambolho do 286, com megas suficientes para abarcar uma e uma só fotografia nos tempos de hoje, havia o Spectrum, que se ligava a um gravador e iniciava o processo. Lembro-me do meu Pai (lembro-me sempre do meu Pai) ligar os fios infinitos e as peças e os botões - eu nunca percebi bem o que ele fazia; aquilo era todo um mundo admirável de coisas novas - e dizer-me a frase intemporal: "vai lá jogar à bola que eu depois chamo-te". E eu ia. Ficava meia-hora ou quarenta minutos a fazer de Chalana ou de Valdo e ele a ouvir aquele XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRXXXXXXXXXXXXXXXX
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depois aquilo calava-se e não dava. Voltava-se ao início e o mesmo processo. Load aspas aspas e mais XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRXXXXXXXXXXXXRRRRRRRRRRR
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e lá entrava, finalmente. Era um milagre da humanidade. Um assomo de moderno e espacial. E então ficávamos uns minutos a atirar uma bola para uma parede. E tudo parecia tão certo. A parede, a bola, a televisão que as mostrava onde horas antes tinha estado o Júlio Isidro nos programas de Domingo ou a Vera Roquete com o Michael Knight e o Poirot. Eram só uns minutos, porque o pátio esperava por mais futebol de grande qualidade e a mesa estava quase posta. Depois de almoço, havia a expectativa de saber se o jogo do Benfica ia dar na televisão. Isto era um fenómeno que emocionava as massas lá em casa, a indefinição, será que dá, será que não dá? A dúvida. O coração a palpitar. O meu Pai olhava-me e eu olhava-o e tínhamos os dois o Benfica no olhar. Depois anunciavam que não dava, "problemas técnicos impedem-nos de transmitirmos o jogo", desculpavam-se. E eu às vezes chorava, outras entristecia. Com aquela manha infantil própria de saber que o meu Pai ia salvar-me da miséria. Voltava ao pátio, inventava o jogo que não ia dar em jogadas intermináveis por entre potes de barro e linhas de cal traçadas no cimento. Até que vinha o grito ansiado: "vai buscar o cachecol, vamos à Luz". E embarcávamos na grande barca, com os cachecóis presos no vidro, buzinando aos outros pais e aos outros filhos, centenas, milhares de adeptos a caminho do lugar sagrado. Em casa, abandonado junto a um canto da sala, enquanto no Estádio nos abraçávamos depois de um golo do Magnusson, jazia o Spectrum, deprimido, já mudo, baralhado de fios junto à televisão, imaginando um futuro em que os seus filhos pudessem também eles ir à bola.

8 comentários:

M disse...

absolutamente delirante aquele "será que dá? será que nao dá?" dos jogos da tv, mesmo até ao inicio da partida, para nao desmotivar as massas, para nao deixarem de ir aos estadios...eu, nos meus 36, lembro-me bem disso.

video killed the radio star?

a tv está a matar a magia do futebol, com jornadas repartidas por 3, 4 dias, entre sexta e segunda....com eliminatorias da champions partidas por semanas...

boa posta

Éter disse...

Load "" Enter: fórmula mágica durante alguns anos da minha juventude. Comprava cassetes de jogos por 250$, acho eu.

Fdx, bons tempos! Deprimi um bocado com o teu texto, Ricardo... lol

Carlos Alberto disse...

Já me arrependi de ter aberto esta página deste blog.

Ó cum crl. se este gajo com 29 se sente velho eu estou morto e enterrado é que quando comecei a ser fá do Kurt e da sua banda com o "Smells like teen spirit" ele apenas tinha 8 anos. fdx.

P.S. Tal como o amigo Éter também eu fiquei um pouco deprimido! Não tento como com a exibição de ontem mas mesmo assim, bastante!

Ricardo disse...

M, além do que dizes, é a escolha dos horários. A final da Taça da Liga vai disputar-se num Sábado, com tudo para fazer uma final das antigas, de tarde, com o pessoal a poder fazer a romaria típica, ver o jogo e voltar a casa (se não quiser ficar atascado) a tempo de fazer qualquer coisa que não seja chegar com os filhos de madrugada. Mas não. Jogo às 9 ou às 8:30 ou lá o que é. Puta da televisão.


Quanto aos meus caros "deprimidos", só posso enviar um abraço de solidariedade. Compreendo-vos perfeitamente. E desculpem qualquer coisinha :)

Catenaccio disse...

Texto delicioso, Ricardo. Tem sido um prazer ler os teus textos. Parabéns!!!

P.S. Faltou aí a musiquinha do MatchDay :)

rogerAjacto disse...

Excelente.

Ricardo disse...

Abraço, Roger e Ricardo. E beijinhos também. E massagens também.

Bonitos, vocês.

Luis Rosario disse...

Mto bom.

As horas passadas a jogar Matchday, formula 1 e Moon alert... As horas passadas no estadio da luz à espera que o jogo começasse, só para guardar um lugar decente...

Como tudo muda numa vintena de anos.