sábado, 11 de fevereiro de 2012

Giada e Del Piero - um golo numa baliza às escuras

O som frio do Hospital à noite. Ouvem-se passos de pantufas do lado de fora do quarto, conversas em surdina de enfermeiras, vêem-se estrelas e luzes da cidade, ouvem-se carros, poucos. Há uma máquina que faz bip bip e o ressonar para dentro de uma menina deitada na cama. A mãe dorme numa cadeira ao lado. As flores respiram devagarinho, em respeito. Uma colcha e restos de bolos dentro de uma caixa. Tudo é quase morte. 

Antes de Giada chegar a esta noite, outras noites e dias passaram-se. Mas no que importa a esta história, teremos de recuar duas semanas. 

Apesar de viver em San Giovanni di Fiore, no Sul de Itália, e Del Piero jogar nesse dia em Turim, a muitos, demasiados, quilómetros um do outro, Giada deixara fecharem-se-lhe os olhos e a alma num sonho quase real, enquanto esperava, em frente à televisão, pelo jogo da sua Vecchia Signora: percorrera a pé, depois em cima de um piano e, no fim, conduzindo uma árvore a distância que a separava da porta do prédio à entrada do estádio da Juventus. Fizera o trajecto com amigos, memórias de jogos e jogadores, cachecóis e a euforia própria de quem vai ter com a sua tribo. A meio do caminho, sentiu-se mal, uma pontada no coração que calou para dentro - havia jogo, nenhuma morte nem doença eram admissíveis. Del Piero esperava-a no relvado.

Perto do estádio, Giada lembrou-se da dor que sentira, balbuciou a um amigo uma relativa indisposição e esqueceu-se de tudo quando começou a ouvir as batucadas que vinham de dentro do recinto. Cânticos ecoavam para fora e chegavam à cidade, pelas bordas do estádio, como lava que subia, torneava uma a uma as bancadas, curvava no topo do estádio e depois descia lentamente até aos ouvidos de Giada. Não mais se lembrou da dor, tinha o corpo invadido pela emoção quente da infância.

O Pai acordou-a: "vai começar". Ela foi ao quarto, beijou o poster de Alessandro que tinha perto da cama, fez duas rezas em honra de não se sabe bem quem, tocou três vezes com a mão direita no símbolo da Juventus, depois três com a esquerda, depois uma com a direita, outra com a esquerda e quando já não sabia quantas vezes tinha tocado inventou para si própria de que estava tudo equilibrado. Voltou a tocar no símbolo, agora com as duas mãos ao mesmo tempo, e pensou para si: "vamos ganhar". 

Na sala, o jogo já começara. O Pai recebeu-a com um sorriso, abriu-lhe lugar no sofá, beijou-a e passou-lhe um cachecol por cima dos ombros. Numa mesa em frente, bruschettas e schiacciatas, foccaccetas, pão cortado aos pedaços, provolone, parmeggiano, uma garrafa de vinho e sumos. Giada, porém, não tinha fome, a Juventus servia bem como alimento. 

A meio do jogo, Giada disse qualquer coisa indecifrável, voltou-se para o lado e caiu. O Pai tentou acordá-la mas depressa entendeu que aquele não era um sono qualquer, Giada tinha entrado em coma. 

Foi levada de urgência até ao Hospital mais próximo, o seu pequeno corpo alvo de exames, furos, teorias. Ninguém sabia a que propósito ou de onde tinha vindo aquele desligar súbito de olhos e cérebro. Giada ficou em observação. Até hoje. Neste quarto onde uma máquina faz bip bip e o som que se ouve é um som de quase morte. A mãe dorme numa cadeira ao lado e as flores respiram devagarinho, em respeito. 

A meio da noite, por entre os sons de pantufas e cigarros queimados em frente às estrelas e às luzes da cidade, o Pai de Giada irrompeu pelo quatro adentro, abriu as luzes, chamou a Mãe de Giada e disse para os enfermeiros: "vamos, vamos, por aqui". Os enfermeiros traziam uma mesa que pousaram ao lado da cama, com um computador em cima. O Pai abriu-o, carregou no play e a cara de Alessandro Del Piero apareceu de repente a falar a Giada: dizia-lhe que esperava por ela no relvado, queria que ela lhe fosse dar um beijo e ver os seus golos. O Pai passou cento e quarenta e duas vezes a mensagem até o dia começar a sair da própria morte em que estava dormido. A mãe tinha a sua mão na mão da filha. "Põe mais uma vez o vídeo", pediu ao Pai. E ele carregava no play, olhava a filha enquanto Del Piero falava e depois, quando chegava ao fim, voltava a carregar no play. Fez isto mais duzentas e três vezes, embora não notasse - a ele, pareceram-lhe 10 ou 11, de tal modo estava concentrado nas feições de Giada.

Foi quando a Mãe já dormia sobre o braço da filha, que sentiu um leve movimento na mão, primeiro quase imperceptível, depois, aos poucos, cada vez mais vigoroso e claro: Giada movia-se. Os dedos, a mão, depois o braço, os pés por debaixo dos cobertores, tudo isto Pai, Mãe e dois enfermeiros viam naquele clarear de dia em Crotone, enquanto outros acordavam, torravam pão ou saíam para o emprego. Se víssemos o Hospital de fora, não podíamos adivinhar que, de entre todas aquelas janelas, uma abria o céu para beijos e abraços, gritos, canções, conversas. O quarto tinha deixado a quase morte e era agora uma janela para a quase vida. Giada, pouco a pouco, movimento a movimento, antecipava o momento de abrir os olhos e a alma ao mundo.

Ainda de olhos fechados, falou. Disse: "Mãe". E a mãe abraçou-a, disse: "estou aqui, filha" e a filha, cansada de ver golos de Alessandro na escuridão dos sentidos, abriu os olhos. Horas mais tarde, contam os relatos mais fidedignos, pediu gelado de baunilha e stracciatella. Foi golo de Del Piero.








12 comentários:

lawrence disse...

Mesmo que o Del Piero só tivesse marcado este golo, estava justificada toda a carreira!

Diego Armés disse...

Chorar como um menino. É isto. Uma vida inteira a ver a bola como um homem e acabar numa figura destas...

Anónimo disse...

Grande golo e um texto à altura.

eupensopelaminhacabeçaeusoulivre disse...

Sou enfermeiro! :)
Viver com o outro estar com o outro é uma alegria maior na minha vida... há momentos que recordando dores e cansaços, vitórias e derrotas de vidas reais... mapetece acabar com todas as disputas - mesmo que tenha de abdicar de coisas grandes - não me vou alongar mais...
Cansado de tanta coisa inútil, quero uma humanidade mais pueril... mais próxima dos valores reais!

Pedro disse...

Boa tarde Ricardo,

Confeso que tinha tido conhecimento ontem dessa história...por vezes o futebol ainda faz pequenos milagres...

Bem horas de me fazer à estrada, e percorrer os 150 km entre Abrantes e a nossa segunda e imponente casa! Até logo...

Um abraço
Pedro

Hattori Hanzo disse...

Grande texto.

Anónimo disse...

Alessandro Deus Piero

Pedro disse...

Boa noite rapaziada, cheguei agora...

Foi uma boa jogatana... um jogo agradável com um ambiente, mais uma vez, fantástico nas bancadas em que deu para poupar na última meia hora, apesar de o imbecil de preto ter tentado fazer das suas...

Apesar do destaque de hoje ser inteiramente para Rodrigo, gostaria de dizer que o Gaitan já esteve bem melhor e que Matic fez hoje o melhor jogo desde que chegou ao Benfica, sinal menos para o penalty falhado do Cardozo que apesar de tudo até nem esteve mal e para mais duas paragens cerebrais do Emerson...em suma, saí satisfeito e já ansioso pelo próximo que será com o Porto...talvez não e ainda vá a Coimbra, não sei!

Um abraço
Pedro

Diogo disse...

Já conhecia a história, mas porra Ricardo não era preciso teres-me deixado a verter lágrimas.
Estou contigo Diego.

Abraço

Ulrich Haberland disse...

Muito bom!

rogerAjacto disse...

Maravilhoso.

Maquinista de azeitonas disse...

A questão que se impõe: E um livro não?

Muitos parabéns, grande história, sublinhada por um grande texto.