Há
um plano de morte: fotografar todos os campos pelados em abandono. Duas
balizas de tinta desfeita, poças de ferrugem nos cantos, um resto de
rede esquecida ao vento, os metais que a amparavam junto à terra em
dedinhos curvos, como se fossem assim: e a mão flecte toda e curva-se,
como se alguém falasse de outrem: é má rês.
No
centro do campo, se houvesse cal, podemos imaginar o lugar de onde a
bola parte: pontapé de saída. Há dois tufos de erva de meio metro que se
posicionam na zona à entrada da área, perfeito para o livre directo.
Alguém passa ao fundo, atrás de uma baliza, mas não vem jogar nem ver um
jogo: segue em frente, leva flores e há-de chorar em frente a uma
lápide. O campo de futebol é próximo do cemitério que é perto de um
sítio sem casas: ou vais à bola ou vais morrer um bocadinho.
Hei-de
fotografar todos os campos abandonados: pelados, ervados, de pedras, de
lama, de piso sintético, todos esquecidos à espera de uma bola.
Passa-se ali, sem aviso, e uma muralha pequena de antigas bancadas aos
soluços, caídas umas contra árvores, outras ainda persistindo no orgulho
de uma memória que projecta para o futuro: há-de vir gente. Mas a gente
não vem e cai a tarde no banco de suplentes de um verde ferrugento onde
ainda pode ser encontrada, se a busca for exímia, uma braçadeira de
"delegado" às listas - é colher uma pá na confusão da churrasqueira e
escavar exactamente na direcção do segundo banco a contar do lugar do
mister.
"Shôr
Martins, acho que é altura de meter o Costa" e foi neste momento em que
o Delegado Capristano achou que devia intrometer-se nas questões
técnico-tácticas, normalmente só das competências do mister Fernandes,
que a braçadeira caiu desamparada no lamaçal daquele dia invernal e
acabou pisada pelo Santos que, chateadíssimo pela precoce saída de
campo, submergiu a orgulhosa faixa que o Delegado Capristano envergava
no braço direito, lavada e passada a ferro no próprio dia do jogo pela
afável mulher que, além desse ofício, lhe tinha preparado um repasto à
base de feijões que o venerável dirigente fazia por esconder, entre o
Aveiro e o Fanecas, contorcendo-se contra a madeira do banco e soltando
uns pequenos desvarios sonoros, normalmente aquando dos lances mais
perigosos, em que a falange se levantava e gritava um suspiro cósmico
que não dava em nada, além do cheiro nauseabundo que ficava naquele
cubículo no qual os jogadores se mantinham, como se fossem tropas.
É
uma pena, de facto, que nunca mais ninguém tenha visto a braçadeira do
Delegado Capristano, se não pela chatice de perder o estatuto pelo menos
pelos gritos histéricos que teve de ouvir do Presidente Varela: "e quem
é que controla o orçamento, caralho?" e todos baixavam as orelhas,
entregando uma moedinhas de solidariedade no chapéu de cowboy do
dirigente-mor.
E
agora tudo isto tão esquecido, nesta pasmaceira de pedras e tufos de
ervas. Não há jogadores nem treinadores, os adeptos cresceram, foram
viver e morrer para outros lados e aquele campo deixado a um espasmo
lunar e a uns visitantes ocasionais para uns peões ou adolescentes
sedentos de amor num balneário de porta entreaberta: não há chaves para o
tempo.
2 comentários:
Há textos que são humanidade, vida crua, pedaços de gente verdadeira... isto é o meu mundo - gente verdadeira, memórias de vida "perfeita"... voltaremos a ter um mundo assim???
Sei de uns quantos "campos da bola" que podias fotografar, que existem exactamente assim como descreveste. Nuns até cheguei a rasgar a carne, por baixo dos calções, aquela típica marca do abnegado jogador de pelados, que faz carrinhos "no matter what". Os putos hoje já não sabem o que é isso. Gostei muito deste pedaço de prosa. Abraço.
Enviar um comentário