segunda-feira, 1 de outubro de 2012

La rumba de Benfica

Não me perguntem mais a que horas é o Benfica, em dias de Champions. Exceptuando talvez da namorada, da velhota que me vende litros de cerveja em horas de aperto e dos sportinguistas - que suporto com simpatia e até alguma compaixão -, não consigo ouvir esta pergunta de mais nenhum ser humano ou desumano, animal, vegetal ou quadrúpede. Estou até capaz de abrir um tópico no facebook - "Vamos matar os que desconhecem as 19:45" - e depois lançar apelos de grande logorreia a clamar pela participação das pessoas. É a democracia a fazer valer-se.

Quando eu vi pela primeira vez o Barcelona no Estádio da Luz era tão pequeno que acho que levava ainda as mangas largas de golos do Rui Águas contra o Steaua de Bucareste e a mão do Vata escondida dentro de uma pastilha Gorila. Do terceiro anel, os jogadores pareciam mosquitos - digo isto porque ainda só havia Elifoot; se tivesse sido anos mais tarde, os jogadores teriam parecido bolas do FM e uma barra em baixo, feérica, vermelha e branca, branca e vermelha, histérica com o golo. Sempre foi o problema destes jogos: não filmavam as bancadas. Era por isso que avançávamos nós, em frente ao computador, fazendo gestos de milhares de adeptos, para ver se os nossos jogadores, metodicamente escolhidos na pré-temporada, compreendiam o que era jogar no Benfica e davam mais aquele bocadinho, aquela corrida que chegasse ao golo. Nunca gostei dos cruzamentos para a área em que apareciam várias bolas que se juntavam todas numa e a bola saía a rasar a trave. 

O Bakero tinha um problema óbvio: era de si pequeno, o que compunha uma imagem que, do Terceiro Anel, se me afigurava difícil de perceber. Seria um jogador ou uma mancha de tinta blaugrana no relvado? Só me dava conta de que aquilo se mexia quando via a bola chegar-se-lhe e sair redonda para um lado e para o outro; um ponto no meio do campo que lançava a equipa para um acordeão, às vezes tudo dançava em expansão, outras comprimiam-se num azulejo mágico. O Bakero devia ter a minha altura e eu, não sei bem porquê, sentia que se ele podia estar ali dentro eu também podia apoiar os pés no cimento coberto a cores da Shell e voar para as costas do Paneira para ver o jogo mais de perto. 

Ao longo dos anos, enquanto crescia, fui vendo do Terceiro Anel os jogadores mais crescidos, como se tivessem feito obras no estádio sem que eu tivesse notado. Ou então cresci uma imaginação galopante que me permitia alucinar gigantes numa visão de mosquitos. Era normal: não se ficava indiferente às tardes e noites de tanto Benfica acumulado - até os bancos de suplentes, onde o Toni vociferava impropérios gloriosos, de repente, a meio do meu crescimento, já me parecia que tocavam nos holofotes. Era assim: primeiro chegávamos ao terceiro anel e ficávamos uns minutos a sentir o ar frio de estar do lado de fora da estratosfera; a meio, entre fumos, chouriças e vinhos a martelo (eu só Trina de Laranja e talvez um golito de carrascão, mas não sei prometer), sentíamos que podiamos mesmo estar em território terestre; no fim, o relvado subia-nos sangue adentro e era como se estivéssemos a ver o jogo deitados no campo, com as cotovelos encostados à grama e os ouvidos cheios de peculiares vociferações dos jogadores e o toque da bola sempre que apanhava uma chuteira no caminho.


O Barcelona tinha o Eusebio, que não era o nosso Eusébio e tinha, entre tantos e tão bons, o Laudrup - que esteve quase para ser o Pedro Barbosa ou então o contrário porque eles se confundiam muito naquele lugar que é o da genialidade. Nós tínhamos o Thern, que foi dos primeiros jogadores a confundir ataque com defesa, largura e profundidade e outros nomes para aquilo que afinal é simples e facilmente descodificável: o futebol. Na direita, lembro-me de ver um pequeno ponto vermelho fazer de lateral e extremo e médio criativo e segundo avançado chamado Vítor Paneira, que era aquele tipo de jogador com quem eu gostaria de casar, se eu quisesse casar com um jogador. A perninha direita estava sempre no ar, à espera de um olhar desatento do adversário, enquanto a esquerda mantinha a ligação do atleta ao relvado. A bola ficava à frente, sem lugar definido, mas sempre ao alcance de um qualquer imprevisto. Depois era ver o isco lançado sobre um lado de Paneira e a bola a sair para o meio, o trote de Paneira em crescendo e depois Isaías ou Thern ou Yuran ou Rui Costa ou algum ponto vermelho que, por algum milagre ainda não explicado, sempre surgia tocando ao de leve a bola ou rodopiando em roleta russa o relvado que ia dar ao Pacheco, que, rodando não a perna mas o bracinho direito aos círculos antes de fintar, avançava pelo campo e descobria pequenos nenúfares de onde aparecia em situação de golo. Chapelou Pacheco Zubizarreta mas foi um quase golo. 

A bola no Benfica levava mais ou menos 10 segundos a chegar do guarda-redes à baliza adversária. Eu não sei bem como eles faziam aquilo, uma vez que estava com os olhos e a boca e os braços parados lá do tecto do mundo, mas acontecia começar uma pergunta sobre os detalhes do placar electrónico ao meu Pai, enquanto o Veloso recebia a bola, e ainda estar a concluir o interrogatório fundamental e já a bola estava lançada no Yuran que falhou um golo com o guarda-redes pela frente. O Yuran ia, assim naquele jeito de tractor acolchoado, passar para o lado com o pé esquerdo mas depois passava a bola por entre as pernas do adversário e já estava em frente à baliza. Isto lá de cima parecia tudo um carrossel de certezas, ou era golo ou era quase golo, não havia terceira opção.

Num espaço de ano e meio, vi o Barcelona duas vezes: uma empatámos, esse de que este texto é feito, e outro em que ganhámos por 2-1, numa Pepsi Cup entre Ailton, Rui Águas e Romário e outras coisas que não vêm ao momento. Fiquei muitos anos sem ver o Barcelona na Luz e depois ocorreu Moretto e dias diferentes. Amanhã vou ver a melhor equipa do mundo de todos os tempos contra o melhor clube do mundo de todos os meus vários corações. Seja o que for, será um dia feliz.




8 comentários:

Rusty Ryan disse...

Realmente, o dom da escrita não é para qualquer um. Lembro-me perfeitamente do jogo (e do golo) de Airton na sua estreia com a camisola do Benfica. Grande Airton. Grande equipa!

Gonçalo disse...

Só vi mesmo o jogo de 2005, foi a melhor equipa que já vi jogar ao vivo. Amanhã isso muda.

David Duarte disse...

Grande Vitor Paneira!!

http://www.youtube.com/watch?v=JNJbUXP8USw

Nunca vi o Barcelona ao vivo. O jogo com o Barcelona que mais me marcou foi o de 92 em que perdemos là 2-1, no ano em que o Barcelona ganhou a sua 1a Taça dos Campeões. Era, se não me engano, a ultima jornada da fase de grupos e o Benfica era obrigado a ganhar para passar. Foi uma competição frustrante jà que perdemos pontos estupidamente com o Sp. Praga e tivemos aquele desastre em Kiev. Contudo nesse jogo de Barcelona mereciamos mais.

Ricardo disse...

Poesia Obesa!!

Seismilhoesum disse...

O Santos de Pelé, o AC Milan de Van Basten, Rijkaard e Gullit, o Benfica de Eusébio, o Real Madrid de Di Stéfano, Gento e Puskas, o Flamengo de Zico e Junior, a Juventus de Platini e Boniek, o AS Roma de Falcão, o Liverpool de Dalglish, o Ajax de Cruiff, Neeskens, Rep e Krol, .... este Barcelona encaixa aqu+i, mas não é a melhor de todos os tempos. Até porque não tiveram as arbitragens que estes têm tido!

Edson Arantes do Nascimento disse...

Também estava lá. Já não me recordo bem mas julgo que foi a minha primeira noite europeia. Um Dream Team feito João Baptista! Melhor: dois Dream Teams!

Desculpem a imprecisão. É que cheguei atrasado à Luz. Naquele dia enquanto os velhinhos televisores da Catedral mostravam o Veloso (mas o melhor era o Lima) na serigrafia low-fi do onze inicial - eu estava numa fila monstra para entrar no recinto.

O jogo começou e a malta encalhada. As palavras agora são redondas e bem ajeitadas e o diabo a quatro, mas tinha apenas 10 anos. Também não interessa. No meio da confusão, e de repente, porque nada o fazia prever, um senhor pega-me assim pelos ombros. Levanta-me no ar. E atira-me para dentro do Estádio:

"- O bilhete?", perguntou o funcionário.

Não disse nada. Fui para a central e dividi o lugar com os kotas que me tinham levado. Amigos dos meus velhos. Ao intervalo subi para um camarote dos antigos. Outra vez em ombros. Como é possível que aquele sócio de camarote tenha falhado um épico Benfica-Barcelona?

Se fosse hoje queria sair do estádio com um néon do César Brito a dizer assim: "Vamos matar os que desconhecem as 19:45". Estou completamente nessa.

Mr. Shankly disse...

Lembro-me desse jogo, estava também no 3º anel. O Barça tinha de facto gajos muito baixinhos (Bakero, Romário) que pareciam mosquitos. Lembro-me que saí orgulhoso do estádio apesar do 0-0, porque o Dream Team festejou o empate como se de uma vitória se tratasse.
O do Ailton vi pela TV (acho que estava de férias).
O do Moretto só comecei a ver por volta dos 20 minutos, os primeiros ouvi-os num táxi do aeroporto para casa. O locutor parecia ter vontade de esganar o Moretto quando ele fez o livre indirecto, e a seguir pediu-lhe desculpas (quando o grandalhão defendeu o livre). Este foi um massacre.

Hattori Hanzo disse...

Essa foi a Temporada do azar de Águas em Kiev, uma das imagens negativas mais marcantes que vi foi como ficou aquela perna. Mas tivemos também grandes momentos nessa Temporada: quem não se lembra do jogo de Highbury Park e da grande partida que fez aí o homem com que os sócios não se chateavam por estar sempre a rematar (havia uma estória na zona de sócios de um adepto que cada vez que via alguém rematar sem nexo chamava ao jogador que fizera esse disparate todos os nomes, a não ser que fosse Isaías e ele aí dizia " não faz mal, este ao 10º remate põe-na lá dentro").
No último jogo do grupo se ganhássemos ia-mos à final, mas era difícil pois o jogo era em Camp Nou. Acabámos por perder 2-1 e se bem me lembro jogámos de igual para igual (como fizéramos no jogo que relatas na Luz) e ficámos assim em 3º do grupo. O Barcelona esse acabou por ser pela 1ª vez na sua História Campeão Europeu (aliás sempre que nos defrontámos uma das equipas o foi: está 2-1 para eles, vamos ao 2-2?).