terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Suar Mística




Regressei aos acimentados, 8 longas épocas depois. Uma miséria. Quando descobri que estava a jogar futebol já tinha deitado o corpo no chão, fingindo uma queda mais ou menos aparatosa que não passou de um voluntário deitar-me em câmara lenta em cima da linha da área porque o chão parecia mais digno do que andar a fintar com os olhos. Há momentos em que o corpo troça de nós, aos gritos - queremos correr mas não vamos; queremos marcar à zona, porque somos tacticamente irrepreensíveis, mas nem o homem-a-homem nos salva; queremos pensar, mas como, se os olhos só vêem aquela garrafa de água gelada em cima das bancadas?

O maior problema deste regresso prende-se com o facto de os outros correrem. Não fosse dar-se esse fenomenal acontecimento de os outros conseguirem correr e, tenho a certeza, eu teria sido o melhor jogador da minha equipa naquele recanto junto aos ferros onde me recostava, feito touro no estertor da morte, a fingir que alguém me lançava indignos lasers verdes dos bancos de madeira decrépitos que não tinham ninguém. Marquei, no entanto, com indelével e inolvidável desenvoltura, todos os que se me aproximavam dos pés, que era para onde os meus olhos se dirigiram grande parte do tempo, pedindo-lhes que me dessem algo mais do que um andar feito de areia e nuvens.

Punha-me na baliza, nunca fui tanto de baliza. Vogava entre as redes e a função de líbero - que era a minha forma de enganar-me. Quase achei que tinha alguma função, cheguei a achar que era possível que talvez, se ninguém notasse muito o que eu não fazia, eu estivesse a jogar futebol. Eu próprio cheguei a achar que jogava futebol, quando me punha a acompanhar à distância o avançado - longe, muito longe, porque sou um defensor do método mais do que da proximidade -, e, uma ou outra vez, estive quase para não ter pena de mim naquele pavilhão a cair aos pedaços, com promessas na parede de coisas boas se alguém comprasse os ténis na GinoSport ou fosse comer ao Restaurante Dona Lucília ou enveredasse pela sempre arriscada escolha de ir fazer compras de Natal à Retrosaria Milu. Cheguei a ler números de telefone nos anúncios, na esperança de que houvesse um que me levasse pelos fios até àquele sítio no tempo - há muito tempo - que me via a receber uma bola, a levantar a cabeça (aprende, Patrício), a seguir confiante com ela nos pés ou a dar, com ternura, num passe delicado, mais um golo que era quase tudo.

«Não voltes ao sítio onde foste feliz», dizem-nos com aquele tom coloquial de quem debita alarvidades alheias. Eu volto. Sem pernas, quase sem pés, com dois pulmões escarrando tropeções, noites e um alcatrão de tragédias junto ao peito. Com um respirar em sufoco, animais na garganta e volumosos versículos cortando o ar por cima da língua. Ao futebol, volto sempre. Agora, cansado porém feliz, volto com os pés. E com uma fatiota que nos tempos em que verdadeiramente jogava à bola nunca enverguei nos acimentados, pelados e relvados deste país: um blusão do Benfica. Para suar mística.

3 comentários:

Kiddo! disse...

Excelente história! Parece a do Michael Thomas!

André disse...

Um gajo não precisa de chegar ao fim do post para ler e saber quem o publica...sou hétero e gosto com muito gosto de GAJOS assim.
Viva o União de Tomar e Gosto de Viver o Meu Subbuteo

H. da Luz disse...

Ha Ricardo!

Como os ares de uma Serra da Estrela de repente límpida e impoluta nos libertam e dão clarividência para lirismos que quereríamos constante como o Minho.
Esta vitória, atesta o que temos vindo a asseverar: Que o Benfica melhora sim (e já o vi fazer muitos e bons jogos neste duelo nos últimos 15 anos, e a perder) mas que o clube de contumil está factualmente em decadência é incontornável.
O momento é de viragem, valha-nos a sempre grandiosa e imutável Estrela.
Bom Natal e Viva o Benfica!