Quando o Simão recebe a bola no meio, a ajeita com um afago e remata para a baliza de Reina, a sala ficou por uns momentos parada, comigo, o meu Pai e a Joplin - a cadela - todos no ar à espera do golo.
Se pudéssemos voltar a esse momento e o congelássemos em pause, notaríamos os nossos joelhos flectidos, as bocas num princípio de entoação e os braços a crescerem para o tecto. A cadela em salto do sofá para o chão, apanhada a meio da viagem, em voo, as patinhas da frente esticadas, o pêlo todo para trás e as orelhas distorcidas. Na televisão, ver-se-ia a bola na zona do penálti, pelo ar e Reina num gesto horizontal de desespero.
Atente-se nos copos de cerveja em diagonal, gotas de líquido paradas na atmosfera, pratos de amendoins oblíquos e ervilhas de salada russa pulando acima da linha da mesa, tapando metade do ecrã entre o poste esquerdo e a cabeça de um defesa do Liverpool. O fumo dos cigarros verticalíssimo e também em ondas, congelado no tempo como uma pintura abstracta - com detalhe, ainda é possível ver figuras imaginárias que o fumo faz. Os cabelos do meu Pai soltos e para trás e a minha mão num gesto de movimento que faz desfocá-la.
Como se estivéssemos empurrando a bola para o golo, há dois pés - um do meu Pai, outro meu - que a chutam no ar por debaixo da camilha e a cadela salta para o cabeceamento oportuno. Vêem-se ainda, se bem observado, os nossos braços em trânsito um para o outro, como se o golo fosse apenas a desculpa para um abraço.
Não há forma possível de voltar a esse lugar. Ainda o mundo nos não permite a congelação em arca frigorífica dos lugares mágicos, junto aos hamburgueres e bifes de peru. Talvez um dia alguém muito mais novo que nós - porque nascido num mundo mais velho que este - invente a propriedade essencial com que se constroem as máquinas de refrigeração dos segundos antes do golo. Por ora, e sem tecnologias adequadas, coloquemos o dedo no play e vejamos o que acontece.
Explode a bola nas redes! Caem amendois, pedaços de chouriço, o pão voa na direcção da lareira, todas as cervejas inundam a mesa e, como cascata, vão descendo numa visão surreal de quotidiano mal explicado. O golo é cantado com mil gargantas dentro de duas, eu e o meu Pai abraçamo-nos, a cadela assusta-se e foge para debaixo do móvel. Na televisão, os jogadores do Benfica vão de cinzento em direcção a uma câmara. Até Beto e seu cabelo amarelo faz parte da trupe.
Nada disto vimos, envoltos num abraço milenar povoado de sonhos e alegria. Quando mais tarde virarmos os olhos para o ecrã, já o Liverpool ganhou um fora na direita ofensiva. Mas nada disso conta para esta história. Nada importa que não seja já sabido - Miccoli faria mais tarde, bem mais tarde, uma bicicleta que o faria correr que nem um louco para os olhos do próprio Pai, no meio do apocalipse benfiquista de Anfield Road.
Hoje não haverá Pai nem haverá Joplin. Estão os dois parados no meu tempo e na minha memória, como entidades que sobrevivem ao passar dos minutos e horas e dias. Congelei-os dentro do coração, sem máquinas avançadas nem ciências transcendentais.
Para hoje peço que muitos joelhos flectidos e muitos abraços no abismo do abraço aconteçam. Com amigos, entre amigos, em família. Um estádio todo suspenso no ar e as bolas em trânsito mortal para o golo.
5 comentários:
Uma belíssima homenagem a dois dos teus Grandes Amores !!!
Lindo...
A minha homenagem a todos os pais. Aos que estão entre nós, aos que já partiram fisicamente - e nestes incluo o meu - a todos os que hoje não podem, não sabem ou não querem sentir o afago de um beijo, o calor de uma carícia.
Para todos o meu preito e o meu muito obrigado!
Magnífica escrita e sentimento! Porra, que para isto não há clube. E escrito assim...
Abraço, Ricardo!
Bonito.
Saudações Benfiquistas.
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