domingo, 29 de maio de 2016
Não me peças nem mais um penálti
As pessoas que nós amamos quando têm tristezas profundas passam, sem querer, essas tristezas para nós. Porque as amamos. Porque estamos atentos à forma como chegam até nós, ao seu olhar vago, dúbio, triste. Quando o meu Pai chegou de Estugarda com os olhos ainda a chorar de um penálti falhado, os meus olhos também choraram porque naquele momento nada havia para além daquele pontapé sem destino. O adepto de um clube tem tristezas impossíveis de explicar a um ser humano normal.
Foi uma vida toda com aquele cabrão daquele penálti agarrado à garganta (ainda lá está, passem os anos todos que passem). Conversas que evitámos assim que esse maldito jogo queria aparecer sobre as mesas de um almoço regado a futebol. O pé do Veloso (que não tem culpa nenhuma), a mão do Van Breukelen (que tem as culpas todas do mundo e mais algumas), a tristeza colectiva dos gloriosos. Era só marcar golo e talvez tivéssemos sido felizes e voltado a sentir o que outros iguais a nós sentiram em 61 e em 62. Devia ter sido para a direita, se calhar podia ter ido mais para cima, com mais força, de outro jeito. Já todos marcámos aquele penálti de forma perfeita num sonho. Sem a pressão do relvado, sem a força maligna do nervosismo. Desviámos a puta da bola para dentro da baliza e gritámos golo vezes sem conta. No sofá, no carro, no café, no jardim, na vida. É tão fácil marcar um penálti quando não temos de marcar nenhum penálti.
Em Turim, depois de um jogo em que o Benfica mereceu tanto ganhar a Liga Europa, depois de eu meter o meu cachecol no chão das bancadas, ao pescoço, em ângulos que faziam paralelas com as estrelas, o árbitro apitou para o fim e então sabíamos ali naquele estádio que tínhamos de ir a penalties. No nosso interior, um pensamento trágico. Uma sombra cruel a abater-se sobre o futuro. Mas a esperança, sempre a esperança a querer retirar de dentro de nós o bicho malvado da descrença. Olhei o céu de Turim, os meus gloriosos benfiquistas, despedi-me do meu Careca que decidiu ir para fora do Estádio, beijei o meu cachecol às riscas brancas e vermelhas feitas à mão pela minha namorada e pensei no meu Pai em Estugarda em 1988. Jurei-lhe que íamos ganhar apesar de saber que não íamos ganhar.
Estava eu em 2014 em Turim ao lado do meu Pai em 1988 em Estugarda. Os dois à espera dos penalties. À espera do nosso lindo Benfica, à espera de uma vitória que deixasse os gloriosos de 61 e 62 finalmente em paz, sem precisarem de cuidar uma vida inteira de nós. Mas a puta da bola estava com febres. O ar estava irrespirável. Um poema trágico levantava-se sobre o relvado. Já sabíamos que íamos perder aquela final de tão habituados que estávamos a perder finais. Como se fosse proibida a felicidade.
O Benfica já perdeu eliminatórias europeias por moeda ao ar. Já as perdeu por penalties, por frangos, por azares, por lesões, por hesitações, por exaustão. O futebol é um jogo que tem no meio a vida, e por isso continua a ser o mais deslumbrante de todos os jogos. Mas não é justo que em 2016 se continue a promover a decisão de um troféu por uns pontapés com a bola parada. Havendo mérito no sangue-frio de quem a remata, o futebol deve promover o sangue-quente. Se o jogo de uma final acaba empatado, deve o futebol dar aos clubes a bondade de outro jogo. É isso que o nosso coração de adeptos pede em silêncio aos deuses.
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6 comentários:
Preferia, prolongamnento e após o prolongamento se continuasse empatado, golo de ouro. Porque toda a emoção está naquele jogo, naquele momento e quando ja n houvesse táctica que resistisse, valeriam os outros factores todos que levaram as equipas aquele momento: quem tem melhor preparação fisica, mais garra, mais coração..até à glória final.
Muito bom.
Ricardo,
Completamente de acordo. Penalties têm muito pouco ou nada de futebol e são um desafio essencialmente para os guarda-redes. Para os guarda-redes e para a sorte. São também um estigma para quem falha. Se os calendários das provas, contratos de televisão ou outras são incompatíveis com repetições de jogos ou finalíssimas, e se é para decidir um vencedor naquele relvado em menos de 10 minutos sem que as equipas joguem à bola, ponham nesse caso os jogadores a bater livres directos com barreira. Por mais ridículo que pareça elimina-se o factor sorte porque bater um livre é esse sim um gesto técnico difícil.
"Estava eu em 2014 em Turim ao lado do meu Pai em 1988 em Estugarda."
Um abraço.
Ainda tenho esse cabrão desse penalti agarrado à garganta!
Estava, como a maioria dos benfiquistas e possivelmente o teu pai, atrás dessa maldita baliza e ainda hoje guardo esse momento com dor.
Pelo jogo jogado talvez não merecêssemos ganhar (nem eles), mas por tudo o resto, merecíamos trazer o caneco para Lisboa.
Também não concordo com esta forma de desempate e talvez fosse mais justo haver lugar a outro jogo...mas e se nesse jogo continuasse tudo empatado, mesmo após prolongamento? Continuavam a jogar até alguém marcar, ou até caírem para o lado?
Porque não os "penaltis" à antiga Liga Americana, ou à Seninho, com o jogador a arrancar do meio campo com a bola e a ter que rematar fora da área, dentro de um limite de tempo?
De certeza que os melhores e mais bem preparados íam ganhar muito mais vezes.
Abraço.
Mário Rui
MM, essa é uma solução melhor, sem dúvida, porque já requer um nível de competência que extravasa a mera "sorte" ou a aleatoriedade dos penalties. Grande abraço.
Mário, com mais um jogo eliminaríamos logo à partida o nível de injustiça. Se se mantivesse o empate, chegar a uma solução que necessite de mais capacidade por,parte dos jogadores. Assim é que me parece estar a dar tudo a uns e nada a outros por um critério que nada tem que ver com o jogo propriamente dito.
desculpas dos falhados e dos frustrados...
maradona falhou e não morreu para o futebol.
Se o Farense tivesse ido às grandes penalidades em 1990 no final do prolongamento do primeiro jogo talvez não tivesse perdido a taça que perdeu no segundo jogo.
as grandes penalidades são o remate mais técnico de todo o futebol. E são uma missão quase impossível para os guarda redes. Quem falha merece perder.
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