sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Mensageiro Cósmico Damiânico

Na primeira vez que ouvi Jean-Luc Ponty a noite lá em casa tinha uns olhos tristes: o Benfica tinha perdido em Setúbal por 5-2, muitos golos do Yekini e a lareira queimava o Toni vivo em lume semi-brando. Ardiam-se sons longínquos de repetições de acordes de órgãos e remates à nossa baliza e havia, junto ao cão, umas cinzas de desespero que o meu Pai e eu chorávamos no tapete de Arraiolos.Tenho saudades de chorar o Benfica com o meu Pai nos tapetes da casa.

Faltava Kulkov, dizia o Toni envergonhado. Isto nós não ouvimos porque a televisão estava muda e o fogo alastrava pela sala com um cheiro a carvalhos ou então a Benfica, não me recordo. Havia um tom celestial e fúnebre, o meu Pai mexia compulsivamente nos toros e vociferava coisas indecifráveis, não propriamente asneiras mas esgares e insultos vorazes contra as labaredas. As pancadas que levantavam fogo pareciam gritar Cabrão do Yekini, Cabrão, o meu Pai avançava sobre a lareira com evidente regozijo, massacrando a zona lateral do lume de encontro ao sector central, de onde saía uma imensa nuvem de fumo e fogo. Yekini, Yekini, Yekini, as fagulhas crepitavam gritando o nome do nigeriano. Yekini, Yekini, Yekini. Cabrão do Yekini.

O fogo absorve todas as nossas misérias e solta-as numa grandiosa festa quente dos sentidos. Impossível reter por muito mais tempo o Yekini fechado junto às brasas; é deixá-lo ir pela chaminé, esfumar-se nas nuvens, quebrar a estratosfera, eclipsar-se no espaço. O momento é sempre o quase. Já foi, o Yekini morreu, resta-nos a dor que o Yekini deixou. 3 golos contra o coração, a vida ali tão vida, a morte tão morte. Abraço-me ao cheiro do meu Pai e dou-lhe o meu sangue de criança a ver se o Toni recebe este choro: mete o Kulkov, caralho. 

"Hoje aprendemos uma lição, há coisas que temos de mudar", parece dizer o Toni em mute. Leio os lábios do mister enquanto o "Cosmic Messenger" traz das colunas para a sala uma espécie de rendida absolvição. O meu Pai continua a olhar o fogo, conto-lhe o que li nos olhos do mister, ele beija-me, já chega de Yekinis. No dia seguinte, promete-me que o Benfica será campeão e que hei-de levar relva do Estádio da Luz para contar num futuro qualquer num blogue.

A relva está aqui. Fui campeão. O meu Pai também. Nós todos. E daqui a dois meses estarei no Ulrich Haberland para agradecer ao Toni ter dito, mudo, que o Kulkov tinha de entrar na equipa. E ao meu Pai aquele abraço de um choro que tivemos os dois no golo do Isaías já depois dos descontos.



6 comentários:

Unknown disse...

Andas inspirado

Gus disse...

Do que te foste lembrar....

Nesse dia percebi mesmo a influência que o Benfica tinha e tem sobre mim....almoçámos em Setúbal, levámos 5 e ainda antes do minuto 90 deixei o almoço à porta do estádio....nunca mais me esqueço desse dia.

Anónimo disse...

Mais Natalicio era impossivel. Obrigado Ricardo,
Abraço,
PN

CondedeVimioso disse...


Penso que a frase do Toni a seguir a esse jogo foi:

""A partir de agora vou pensar pela minha cabeça"".

Não a explicou publicamente mas sei que o afastamento dos titulares de Kulkok e Yuran tinha a ver com o disciplinador Jesualdo que entendia que a melhor maneira de educar os meninos era à bordoada.

A verdade é que depois desse jogo Yuran e Kulkov ((um dos melhores médios de sempre que passou pelo Benfica))começaram a ser indiscuveis e o Benfica foi Campeão.

Artur disse...

Muito obrigado.

Anónimo disse...

Meu caro amigo Benfiquista. Os seus escritos são da mais bela prosa que existe na blogosfera benfiquista. Continue assim.