Assisti ontem de manhã a uma das cenas mais surreais de que tenho memória. Por isso, e por me ter alegrado o dia de forma surpreendente, resolvi partilha-la aqui convosco, para começarmos o ano em beleza. Depois me dirão se lhe acharam tanta graça como eu achei. Vou tentar que a descrição seja o mais fiel possível, de forma a pintar o quadro com as suas verdadeiras cores. No final, acredito que vão ficar tão incrédulos como eu ainda me encontro.
Sentei-me no Frutalmeidas da Avenida de Roma para tomar um pequeno almoço tardio. Um belo de um copo de sumo depois, ia já no segundo pastel de massa tenra quando reparo na mesa da frente com mais atenção. Confesso-vos que não tenho por costume ouvir propositadamente as conversas dos outros, mas este grupo era ostensivamente espalhafatoso. Sem qualquer desprimor para a profissão, diria que toda a dinâmica de interação dos seus elementos era algo apalhaçada. Chegava mesmo a ter traços de um número de Vaudeville.
Da primeira vez que reparei neles, pareceu-me ver um grupo de gente vestida de forma perfeitamente normal. Mas ao fim de pouco tempo notei que estavam todos com uns óculos à Groucho! Vocês conhecem esses óculos de que falo, com certeza. Com um bigode e um nariz enorme na ponta? Sim? Pois podia jurar que não os estavam a usar segundos antes.
Este pormenor deixou-me alerta. O resto das roupas era completamente normal. Pelo menos até ao momento em que me virei para o empregado durante dez segundos, não mais, para pedir outro pastel de massa tenra. Quando me volto de novo para a mesa, reparo que agora um deles envergava uma daquelas faixas presidenciais, que vemos frequentemente nos presidentes da América do Sul. O pormenor mais curioso era mesmo uma miniatura que ostentava na faixa. No lugar da roseta surgia uma réplica de uma mesa de matrecos, tapada por um plástico transparente. Daqueles plásticos próprios para não deixar saltar as bolinhas, sabem do que falo? Isto é surreal, reconheço, mas juro-vos que é tudo verdade. Estas pessoas mudavam de aparência com a facilidade de um truque de televisão. A minha atenção estava ganha. Não ia descolar mais o olhar da palhaçada, por um segundo que fosse.
O estranho grupo era composto por três membros da direção de uma equipa feminina de matraquilhos e por dois empresários, com os quais se decidia, naquela altura, um futuro patrocínio do clube. Ao que percebi, queriam arranjar à força um valor superior ao do clube rival, o clube com mais títulos lá do bairro. Até esse momento, digo-vos que desconhecia toda esta problemática em torno dos matrecos. Nem tão pouco sabia que existiam equipas femininas da modalidade, quanto mais que estas eram patrocinadas.
O presidente do clube (o tal que envergava a faixa!) era um tipo entroncado, com uma voz rouca e de risco ao lado. Falava com uma entoação cómica, meio afetada. Para vos poder situar melhor, nos diálogos que se seguem imaginem um pseudo beto da linha, sem a educação, mas com todos os maneirismos ampliados. Todo ele em cómico, todo ele em bom! Sentava-se ao lado de dois lacaios, o Zé Inácio e o Zé Otávio. E argumentava com os futuros patrocinadores, donos de uma oficina de bicicletas. Como já referi, queria à força obter uns euros a mais do que os rivais. Os senhores das bicicletas diziam-lhe que não, Presidente, não dá, o seu clube não tem a dimensão do outro, nem lá perto. Pode esquecer. Ninguém lhe vai dar mais do que nós oferecemos, Presidente.
Mas o Presidente não se dava por satisfeito. Limpou o bigode de plástico com um guardanapo e pediu mais um copo de sumo ao empregado. Olhou para os patrocinadores, como quem domina todos os esquemas possíveis, e avançou com uma contra proposta.
—Oiça, amigo. Nós não podemos ficar atrás do nosso rival, percebe? Temos que engan… bom… temos que mostrar aos sócios que somos tão grandes ou maiores do que os outros. Senão vamos perder a cara, está a ver? Os nossos doze associados vão ficar fulos da vida, e com razão. Já lhe disse que somos pela transparência? Não? Pois digo-lhe agora que somos o único clube de matraquilhos nessa cruzada, contra tudo e contra todos, percebe? Nós somos especiais, entende? Olhe, vamos tornar a proposta mais aliciante para o vosso lado. Parece-lhe bem? Vamos negociar também a cedência de direitos de imagem de algumas partes do corpo deste meu capach.. quero dizer, deste meu colega de direção. O que me diz se juntarmos aqui o rabo do Zé Inácio como extra? Deve dar para acrescentar pelo menos… vá, sei lá… mais uns cento e cinquenta paus ao bolo, não será assim?
O desgraçado do Inácio, que bebia nesse preciso momento um pouco de sumo de jaca, mal podia acreditar naquilo que estava a ser dito sobre o seu traseiro, para lá dos insólitos óculos. O pobre acabou por não conseguir engolir o sumo, que cuspiu integralmente no chão de calçada. Os outros quatro elementos do grupo levantaram os oito pés, em uníssono, para os baixarem logo de seguida, sonoramente. Parecia um número muito bem ensaiado, garanto-vos. E, nessa altura, a coisa ficou ainda mais interessante. Os sapatos, afinal, já não eram assim tão normais. Eram pretos, sim, mas muito grandes. Muito maiores do que os pés! E todos com as solas meio descoladas. Abanaram também em uníssono.
Ainda incrédulo e de olhos esbugalhados, Inácio balbuciou como pôde. O meu rabo, Presidente? Mas… mas o meu rabo não! Não, senhor presidente, o rabo não. Tenho dito!
—Esteja calado Inácio, oiça. É pelo clube. O clube acima de tudo, Inácio. E é só para a fotografia, homem, estes senhores vendem selins, tá a ver? Shôr empregado! — exclamou, de dedo esticado — tenha a gentileza de trazer outro copo de sumo de abóbora aqui para o Inácio.
Nesta altura a conversa não corria como o Presidente queria. O rabo do Inácio não estava a ter a melhor recepção do lado dos patrocinadores, habituados aos grandes modelos para a promoção dos seus selins. E o Presidente decide virar mais uma carta.
—Bom, temos outras propostas para os senhores. Escolham alguém para morder. Eu mando o Zé Otávio morder uma… vá, duas pessoas à vossa escolha. Antes de responderem, reflitam bem na minha proposta. Duas pessoas. À vossa escolha. A quarenta euros a mordidela, vá, vezes dois… bom…isto é… vá, mais cem euros e não se fala mais nisso. Brindamos à proposta? Otávio, o que é que acha disto? Posso mandar vir o sumo de tomate, para selar o negócio?
Eu garanto-vos que, até este momento, Otávio tinha uma estatura perfeitamente normal. Ficarão, por certo, tão descrentes como eu fiquei com aquilo que vos vou revelar. O Otávio era anão! E, até aqui, tudo bem. Não seria de estranhar esta sua condição de tamanho reduzido. A questão é que, segundos antes, Otávio não sofria de nanismo. Alterou, por artes mágicas, não só a estatura como também o figurino, num piscar de olhos. Em vez do fato, vestia agora um casaco largo, em xadrez amarelo e laranja, com as mangas muito curtas, quase pelo cotovelo, deixando bem visível uma camisa de flanela azul e branca. Gesticulava com fartura, depois de espicaçado pelo presidente. Dizia alto que sim, que mordia, claro que mordo, quantos são? Mordo já o Jojó, carago, odeio o Jojó Juju. Passa a vida a gozar connosco, esse farsante.
O presidente chamou-o a si.
—Ouça, Otávio, o Jojó Juju agora é dos nossos. Lembra-se? Os outros é que são maus, o Jojó virou o paletó ao contrário, está recordado? Agora é dos bons.
Otávio sacudiu a cabeça com movimentos rápidos, durante uns segundos, como quem reclama alguma racionalidade. Enquanto o fazia, pude ouvir, distintamente, o barulho de um chocalho. Não vi o chocalho, admito, mas escutava-o perfeitamente. Devia ser um daqueles chocalhos imateriais da UNESCO.
O Jojó Juju? disse, muito rapidamente. O Jojó é uma pessoa maravilhosa, Presidente. Só lhe encontro virtudes. É um Ser fantástico, presidente!
Nesta altura, e por indicação do Presidente, Inácio tira uma tuba enorme do bolso. Não me perguntem como é que a tuba foi parar dentro daquele sobretudo roxo com bolinhas castanhas, porque eu, neste momento, nem sequer consigo justificar o aparecimento do sobretudo! O facto é que ela apareceu assim, do nada. E que bem que tocava Inácio. Começou a fazer uma belíssima linha de baixo, que manteve nos minutos seguintes, sempre em crescendo, aumentando desta forma o suspense do final da parada, que se aproximava. FOHM-POHM-POHM-POHM, FOHM-POHM-POHM-POHM
A Inácio juntou-se também Otávio, com um ukelele que tirou de uma daquelas malas de executivo com código. E passámos a ter harmonia, com quatro cordas. TINGERLIHM-DIHM DIHM, TINGERLIHM-DIHM DIHM. O presidente joga todas as cartas que ainda possui, e passa a cantar as propostas. Avança com a mãe, e com o pai também. Com a coleira do Cabeçudo, o seu belo gato felpudo. FOHM-POHM-POHM-POHM, toca Inácio. TINGERLIHM-DIHM DIHM, acompanha Octávio.
—Noto que os senhores patrocinadores não me tomam as dores. Percebem agora que o clube dará tudo o que tem e o que não tem, como vos convém. Têm que entender que eu só não quero ficar mal, quero passar à frente do nosso rival!
Octávio complica os acordes nesta altura, omitindo a tónica e a quinta, que são brilhantemente dadas por Inácio, e faz extensões como pode. A estrutura impõe-se.
—Ofereço-vos um tuc-tuc com três passeios, conduzido por uma mulher de belos seios. Deixem-me tornar o momento musical mais engraçado, enquanto seguro neste berimbau dourado. Agora, sempre que os senhores torcerem o nariz a uma nova proposta, o berimbau ira soar em vossa resposta. BOIN-OIN-OIN-OIN-OIN-OIN.
Seguem-se então um par de meias e umas calças de pijama muito feias — BOIN-OIN-OIN-OIN-OIN-OIN — mas são quentinhas, ora bolas. Uma campainha das antigas, a funcionar? Um disco de velhas cantigas, por estrear? Um corta unhas e este canivete suíço. Como? Não valem um piço? — BOIN-OIN-OIN-OIN-OIN-OIN — Dou-vos licor de tangerina e uma camisa muito fina. Um ferro de engomar, que se recusa a funcionar, mais um belo de um brasão, que é todo feito à mão. Do Otávio, cedo-lhe as cuecas, e do Inácio a sua coleção de bonecas!!!! Cedemos toda a publicidade à volta da mesa de matraquilhos e ainda as camisolas suadas das nossas jogadoras para os vossos filhos. Pintamos os bonecos com as vossas cores, e assim. Até os pomos sentados, em cima de um selim!—BOIN-OIN-OIN-OIN-OIN-OIN.
O desespero é cada vez mais evidente na cara do presidente, que decide jogar a derradeira cartada.
—Já vos falei que somos os maiores defensores da transparência nos Matraquilhos? E se eu vos cedesse a transparência?
Depois desta quebra de rima, fez-se silêncio absoluto. Octávio e Inácio tinham parado de tocar, perante a antecipação da oferta. A tampa não, presidente. Tudo menos a tampa. É aquilo que nos define, Presidente, aquilo que nos torna tão diferentes, tão especiais.
—A rivalidade acima de tudo, meus queridos lacaios. E agora, senhores patrocinadores? O que me dizem? Cedo-vos a tampa transparente, para adaptar em cima de uma mesa de matraquilhos. Já lhes tinha dito que somos os únicos defensores da transparência? A transparência acima de tudo, meus caros! Então? O que me dizem?
E assim se fez o negócio e veio bebida e comida para todos. Os patrocinadores estavam em delírio. Ficaram com os direitos sobre tudo o que podia ter algum valor. São os verdadeiros donos do clube. E excederam a proposta do rival nuns míseros cem euros e um selim. Dos mais baratos.
No meio desta confusão de sumos e pasteis, com o Presidente a ajeitar a faixa e o cabelo, chega um terceiro lacaio, que tinha estado à procura de um lugar para o carro durante todo o tempo da negociação.
—Ó Zé Eduardo, só agora é que você chega? Para a próxima vem você ajudar-me e fica o Inácio encarregue de arrumar o carro. Recusou-se a ceder os direitos de imagem do rabo nas negociações, acredita? Ao menos o seu está sempre disponível.
E foi de lá, bem do meio de toda essa disponibilidade, que o Zé Eduardo tirou um sax tenor, juntando-se ao resto do grupo. Sairam em êxtase do Frutalmeidas e foram a celebrar o negócio pela rua fora, tocando e dançando, e com um novo e adequado figurino. Estavam todos vestidos de árabe.
5 comentários:
Parabéns.
Muita imaginação, com muita garça.
Como diz o da faixa "fartei-me de rir".
Parabéns.
Tem tanto de brilhante como de real!
Ricardo
Obrigado pelo texto, foi um prazer lê-lo.
Aplica-se á realidade.
João santos
Vamos e ser todos ccomidos de cebolada.
Se por "comidos de cebolada" quer dizer que temos as transmissões televisivas outra vez na mão dos corruptos, estou de acordo. Se falava da época futebolística 15/16, então ainda mais de acordo estou. Vai ser cebolada num daqueles churrascos que o Rui Vitória tão bem sabe fazer, e comer. Na verdade, se o futebol fosse uma competição de comida, Rui Vitória seria campeão por muitos e bons anos
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