O Delegado Fagundes não pregou olho a noite
inteira, uma dor que lhe subia pelas costas em jeito de queda de água só que ao
contrário, um veneno sangue acima até à ponta da nuca, e outra, em refluxos,
que lhe aquecia os órgãos até ao gargantil. Podia ser que as duas picadas -
uma, provavelmente consequência dos pesos brutos que ajudou a carregar até ao
balneário do clube (equipamentos, chuteiras, toalhas, um conjunto de chávenas e
bules, sacos de desporto, bandeirinhas e uns toros de madeira); outra, quase de
certeza uma vingança do próprio corpo ao exagero alcoólico com que a si mesmo
se brindou na noite passada. Parecia que as duas dores se tocavam no cocuruto
do esférico craniano e ali se deixavam ficar, aos sapateados com o cérebro do
pobre Fagundes.
Tudo isto aconteceu numa madrugada longa,
noite que nunca acaba, enquanto a esposa ressonava o hino do Benfica, ou o que
lhe pareceu o hino do Benfica, nervoso que estava a antecipar o jogo de mais
logo. Não sabemos ao certo, e não queremos injustamente suspeitar das maleitas
do sujeito, se aqueles lamentos com que no dia seguinte alimentou o
pequeno-almoço de ovos e chouriço foram apenas fruto de uma hesitação-ansiedade
ou se de facto ocorreram, graves, no corpo de Fagundes. Mas podemos, porque ao
relato do próprio tivemos acesso nos dias posteriores, contar a confusão de sentidos
que a demência nocturna espalhou pela mente do Delegado.
Foram horas de suplício, atirado para uma
contínua escolha de jogadores e tácticas, substituições a meio do encontro,
dicas a dar aos jogadores, cálculos sobre a temperatura do relvado, o cheiro da
grama, se estaria molhado ou seco, as dúvidas sobre o adversário, quem jogaria,
quem não.
“É possível que entre com o Kulkov de
início, ganho capacidade de ter a bola e agressividade no miolo, mas quero
garantir que o jogo não cai num adormecimento de meio-campo, tenho de encontrar
uma fonte de contra-ataque, vai o Paneira na ala e o João Pinto fica no apoio
ao Yuran. Sim, mais coisa menos coisa é isto”
E - depois de decididas estas e outras,
várias, questões técnico-tácticas de superior importância - punha-se a contar
com os dedos os onze jogadores que faria alinhar no jogo.
“Então, temos: Neno, Abel Xavier, o Abel
deixa-me na dúvida, aparece bem no apoio ao ataque mas tenho medo das
investidas alemãs, pronto, então ponho-o mas se notar desequilíbrios tiro-o ao
intervalo. Neno (e fechava o punho, só com o mindinho em riste), Abel Xavier,
William, Helder, Schwarz…”
A mulher por esta altura atingia em
estranhos sons o que lhe parecia clara e inequivocamente ser o refrão: “Seeeeeeeeeer
Beeeeeeeeeeenfiquiiiiiiista é ter na alma…” e estragava-lhe a composição do
onze – impossível raciocinar de modo metódico quando Luís Piçarra aparecia a
interromper a prelecção do raciocínio. Desistia e acompanhava a música, fazendo
pequenos compassos com a defesa toda do Benfica a tocar piano na barriga. Primeiro
Neno, Helder e Schwarz, ao mesmo tempo, num tocar de jazz, forte e sólido;
depois, só William e Abel Xavier, enquanto o dedo do meio se esticava por um
bemol mais acentuado.
O sono pesado da esposa encontrava um novo
refúgio e os sons acalmavam. Voltavam as dores de Fagundes e as dúvidas
existenciais – umas e outras no meio daquele pensamento alucinante e o onze do
Benfica que nunca mais se decidia, já estavam os jogadores cansados, sentados
num balneário conversando sobre o tempo quando Fagundes finalmente se decidiu,
agora mais ríspido e pouco disponível para roncos conjugais e dores
provavelmente fictícias.
“Sem mais demoras: Neno, Abel Xavier,
William, Helder, Schwarz, Paneira, Kulkov, tenho de ver se de manhã vou comprar
o pão e o frango para o jogo dos putos. Três sacas de pão, espero que o Pereira
tenha anotado o pedido, este gajo já no dia anterior a irmos jogar ao Tramagal
deixou-me na mão, cabrão do bêbado, esquece-se de tudo. O puto Figueiredo tem
uma lesão no joelho que não sei se vai dar para entrar de início, se calhar
temos de meter o Chico, mas foda-se ficamos sem meio-campo, que o gajo só quer
atacar e depois vêm os pais dos outros foder-me a cabeça com as cunhas e os
interesses. Qualquer dia cago nisto.”
O Delegado Fagundes, por mais que se
compenetrasse, não conseguia finalizar o onze. Eram sempre problemas e assuntos
prementes, lógicas e pensamentos que lhe vinham de mansinho naquela noite de
dores e insónia. Levantava-se, acendia cigarros, fingia que tinha sede para
sair da cama e ia abrir o frigorífico mas não tirava nada, ficava só a olhar as
coisas nas prateleiras frias: três pimentos, um pacote de leite, frango, uma
garrafa de coca-cola, três minis Sagres, ketchup, mostarda e massa de pimentão.
Queria ter fome para inventar ofícios, mas acabava por se abandonar, uma e
outra vez, à cama onde ainda se ouviam gemidos e roncos de um sono que lhe
pareciam, estaria louco?, a voz de ave canora do Hino do Benfica.
Deitava-se e olhava o tecto branco. À noite
as sombras pintavam-lhe pedacitos escuros que se assemelhavam a jogadores
distribuídos por um campo de futebol e ele começava finalmente a regressar ao
metódico reflectir de uma táctica ideal.
“Neno, Abel Xavier, William, Helder,
Schwarz, Paneira, Kulkov, Rui Costa, Isaías, João Pinto e Yuran”
Ficou com as duas mãos completas e outra
que lhe apareceu para confirmar o onze, só com o mindinho outra vez em riste
para o tecto branco. Olhou o dedo, estranho e deformado, lembrou-se que era com
aquelas mãos e dedos que teria de ir buscar a comida para os putos e guiar a
carrinha do clube e lavar os equipamentos e preparar os grelhados para a festa
da aldeia e depois, se ainda tivesse tempo, acariciar as mãos da esposa e
pedir-lhe, com jeitinho, que cantasse o Hino do Benfica. Não a dormir, mas
depois disto:
26 comentários:
Soberbo caro amigo...
Abraço
Pedro
Este jogo é uma das cenas mais fabulosas que guardo no coração!
Dos melhores jogos de futebol que já vi, e o grande Toni no final durante a conferência de imprensa a mostrar o verdadeiro espírito desportista á Benfica, com muita solideriedade e garra.
Que hino ao futebol!
Devo ver o resumo deste jogo uma vez por semana e a cada vez fico todo arrepiado.
Lembro-me perfeitamente de tudo e sobretudo do meu pai a dizer depois do 2-3 "Pronto, o mais dificil està feito. Agora é so aguentar. Não te preocupes filho. Jà passàmos". Ora toma là dois golos no busto em dois minutos que isto no Benfica tem de ser sempre a sofrer. Grande, grande, grande Benfica. Ou devo dizer, simplesmente Benfica.
Penso que jà o disse aqui uma vez. Para mim a época 93-94 foi a ultima época do verdadeiro Benfica. O que tempos tido desde então são apenas copias (que são sempre piores que o original) ou então benfiquinhas : é preciso ter ainda apanhado o grande Benfica para perceber a pequenez na qual o nosso clube se encontra hoje em dia.
Saudades, muitas saudades, quase que chorava com as memórias do meu Benfica desses tempos.
Lembro-me como se fosse hoje deste jogo, acho que nunca vivi tanto uma futebolada como esta.
Como diz o outro sobre Portugal, ai Benfica Benfica, o que é que fizeram de ti...
Obrigado Ricardo
Forte abraço
Desculpa Ricardo - fodaaaaaassseeee este jogo é do caraaaaaaaaaaaalho!!!
Obrigado Yuran e Kulkov e todos... obriiiiiigaaaadoooooo!
Bem, o anónimo das 22:15 sou eu.
Este jogo e o de Highbury Park, foram durante muitos anos os jogos que ficaram gravados na minha memória.
para mim ainda são, talvez com o 3-6.
Grande jogo, com uma equipa muito razoável mas vulnerável na defesa. Lembro-me de ir a Setúbal e voltar de lá furioso. Ainda nessa época (acho que foi nessa) lembro-me de ir ao Restelo, ver o Benfica ser eliminado com golos de Luis Gustavo e Mauro Aires. O Belenenses que seria depois eliminado pelo Lusitânia de qualquer coisa. Na época seguinte nem me lembro de quantos jogadores trocámos por esses dois cepos.
Foi um pouco inglório ser eliminado na meia final, com o Paneira a falhar um penalti que muito provavelmente nos teria apurado. O Toni merecia ter ido a essa final.
Não me lembro muito bem do que senti a ver o jogo nesta altura (tinha 5 anos...), mas lembro-me de o ver. E tenho orgulho disso, como tenho em memória outros jogos, nem todos bons, mas todos eles do Benfica.
Deste vídeo, o que mais prazer me dá é ouvir o comentador dizer "O Benfica, com três estrangeiros em campo"...soube-me bem ouvir isto, apesar de me deixar bastante entristecido pela realidade actual no que à equipa principal diz respeito.
O texto, esse, está bastante bom. Só me questiono, Ricardo, se esse jogo com o Tramagal seria contra...o Alferrarede. Grandes dérbies que eu assisti em pequeno, mas isso são outras histórias, que agora não interessam, mas gostaria que me matasses esta curiosidade.
Grande texto. E que o nosso Benfica volte a ser um Benfica tão bom ou melhor que o de 93/94 (no mínimo).
Abraço!
Bonita homenagem ao grande Toni.
Uma demonstração do que é ser benfiquista e perceber o Benfica.
No momento que vos escrevo, correm-me lágrimas pelo rosto abaixo. Este jogo vio-o sozinho com o meu pai, que de tão eufórico num dos festejos quase quebrava o candeeiro da sala de estar! Tinha 14 anos e foi realmente a explosão mais forte de sentimento e orgulho benfiquista que alguma vez tive. Nem o 3 - 6 em alvalade me proporcionou tamanha alegria. Foi um jogo memoravel, de uma equipa fantástica e que espelha a verdadeira mística do Glorioso, que se perdeu.
Por favor voltem ao passado e tragam-nos de volta, façam desaparecer o damásio e o artur jorge.
No momento que vos escrevo, correm-me lágrimas pelo rosto abaixo. Este jogo vio-o sozinho com o meu pai, que de tão eufórico num dos festejos quase quebrava o candeeiro da sala de estar! Tinha 14 anos e foi realmente a explosão mais forte de sentimento e orgulho benfiquista que alguma vez tive. Nem o 3 - 6 em alvalade me proporcionou tamanha alegria. Foi um jogo memoravel, de uma equipa fantástica e que espelha a verdadeira mística do Glorioso, que se perdeu.
Por favor voltem ao passado e tragam-nos de volta, façam desaparecer o damásio e o artur jorge.
Ai aquela defesa "meu deus"... a euforia do João no último golo... mas que grande equipa de ataque "meu deus"... Obrigado meu Deus por esta memória... que memória, que memória ... que arte... que paixão...
Tanto talento e garra nesses anos, pena o cancro financeiro que já estava instaliado e que iria minar este Benfica.
Leverkusen; Highbury; os 3-6, os 5-2 na final da Taça ao Boavista; uma repetição de uma eliminatória da Taça com o Porto na Luz, numa 4ª à tarde (depois de Mostovoi ter empatado nos descontos do prolongamento, nas Antas); aquela vitória no Bessa com 9, com Sousa à baliza e debaixo de um dilúvio...tantos jogos inesquecíveis, e no entanto a sensação que rolávamos montanha abaixo.
João Pinto e Vitor Paneira, princip+almente, desculpem o que vos fizeram. Obrigado por tudo!
1 - toda a gente se lembra da bomba do abel xavier, mas aposto que ninguem se lembrava do passe de calcanhar do rui costa.. o maestro será sempre o maestro!
2 - a jogada do joão pinto no 4º golo..
3 - toni: "não há palavras para exprimir aquilo que me vai na alma"
Um pesadelo que se tornou num sonho, esta época foi a ultima que tivemos Benfica. Quem pode esquecer, este jogo, o jogo com o Parma na Luz, o 3-6 em Alvalade, a reviravolta contra o Sporting na luz com golos de Yuran e Isaias, os 3-3 nas antas? Só se viveu qq coisa parecida com o que era o Benfica de 93 e de 87 e 89 em 2009/2010. Lembro-me de ir à luz miudo, ver o diamantino,veloso, rui aguas, magnusson, o thern (que jogador) ver o carlos manuel, ver o valdo, ricardo e se nos atrasassemos uns minutos perdiamos alguns golos do Benfica. A lei Bosman e uma serie de dirigentes e treinadores mentecaptos encarregaram-se de matar o Benfica. A mesma Lei Bosman matou um Ajax fabuloso que desde 95, ano em q foi campeão europeu, não consegue montar uma equipa em condições. Obrigado pelas boas recordações. Para os mais novos, tenho pena que nunca tenham sentado o rabo no cimento gelado da Antiga Catedral, que não saibam o que é estar tão cheio que as escadas de acesso às bancadas desaparecem num mar de gente em pé, que nunca tenham sentido a força de 240 mil pés a bater no chão em unissono e a fazer tremer corações e que nunca tenham festejado um golo em delirio como festejei ao colo do meu pai o golo de vata contra o marselha(Não havia mais lugar, penso que entrei pq na altura bastava pagar alguma coisa a um porteiro conhecido :) ). Lembro-me como se fosse hoje, quando saimos do estádio, era uma festa impressionante, o caos era rei, mas era um caos de felicidade. Os carros não andavam mas não havia nervos, só festa, camaradagem, comes e mts bebes. Por vezes as saudades do Benfica são insuportáveis...
Excelente texto de um grande jogo. As melhores recordações em termo europeus que eu tenho é este jogo e o de Highbury Park, penso que na temporada a seguir, onde Isaias e o seu génio andaram à solta. Esta equipa do Leverkusen de facto era muito forte: Schuster que apesar de de velho ainda jogava muito (tinha estado em Espanha e jogou no Barcelona, Real e Atlético), Andreas Thom, um Paulo Sérgio ainda novo que depois foi parar ao Bayern Munique e na frente um super Kirsten que até era pequenino, mas que era um autêntico tractor e que tinha um grande jogo de cabeça. Houve um Verão que se falou ainda que o Kirsten tinha tudo tratado com o Benfica, algo que infelizmente não ocorreu.
Hanzo, quem eu me lembro de ter tudo tratado para o Benfica foi o Klinsman, mas o Artur Jorge vetou o negócio porque ele não tinha cultura táctica. Na altura falou-se também de Ronaldo, Weah, e Salenko, como quase contratados, mas o Artur Jorge queria mesmo era o Luís Gustavo e o Mauro Airez e foram esses que vieram.
Ricardo (só agora passei por aqui), obrigada por estes dois posts, muito obrigada mesmo!
Como diz o Rui Santos, por vezes as saudades do Benfica são insuportáveis. São mesmo!!!
Shankly, essa eliminatória com o fcp à tarde (2-0 com um golo de William de penalty se bem me recordo) foi o meu primeiro jogo entre os No Name Boys...hehehehe
Saudades deste Benfica.
Das melhores alegrias que o Benfica já me deu. Esse, e o jogo em Highbury Park (3-6 à parte :D).
No de Leverkusen, apesar de ter apenas 9 anos nessa altura, nunca mais me esqueço. Lembro-me como se fosse hoje, o pavor que o Neno me dava - nos cruzamentos em geral e nos pontapés de canto em particular - de tal forma que fugi para as escadas do hall da minha casa, às escuras, durante os cantos da equipa alemã (sofri tanto.. duas vezes que me mataram e me puseram a chorar.. com os meus pais estupefactos a verem o que se passava comigo, e que se repetiu tantas vezes nos anos seguintes..).
Enfim, uma epopeia digna de um clube monumental como o Benfica! :D
http://www.benficacomamor.blogspot.pt/
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