A minha primeira camisola como jogador federado foi - imagine-se - do... Sporting. Estávamos na altura (1990) em que, em Abrantes, o Benfica tinha a sua sede em ruínas e a filial (a 2ª a nível nacional) não se mostrava capaz de ter uma formação sustentada. Por outro lado, o Sporting - que a nível nacional se afundava num declínio profundo que ainda hoje mantém e de que muito dificilmente sairá - tinha um associativismo na cidade de grande entrega e dinamismo, também pelas mãos de Francisco do Carmo Silveirinha, honroso sportinguista, homem de brio, então dirigente do Sporting de Abrantes e... meu avô.
A princípio, foi-me difícil encarar a ideia. O meu Pai convencia os meus 9 anos a integrar os treinos de pré-época da equipa da cidade, ideia que me pareceu a todos os títulos notável, uma vez que os parques da cidade, os jardins, os pátios e os corredores lá de casa reclamavam não ser o sítio certo para eu exponenciar o meu futebol de camisola 10 do Valdo Cândido Filho.
O problema deu-se quando o meu Pai me explicou, muito calmamente para que eu não saísse aos berros pela rua abaixo, que teria de usar uma camisola feia de listas horizontais verdes e brancas. Não era possível a um menino de 9 anos ter de usar o mesmo traje daqueles que, no Estádio da Luz, eram tidos como rivais e que saíam invariavelmente da catedral vergados à força do Glorioso.
Usar aquela camisola seria não só representar os mais fracos como trair o Benfica e aquele "10" cosido à mão - com o "1" um bocadinho mais abaixo do que o "0" numa clara desatenção do meu Pai para as façanhas da máquina Singer. Seria trair o Valdo e todos aqueles que de duas em duas semanas se enchiam no Estádio para festejar o benfiquismo apaixonado. Que responderia a algum deles, se numa tarde soalheira me pusessem a mão na cabeça e me perguntassem: "então, miúdo, jogas no Benfica lá da tua terra?"? Que vergonha passaria, enquanto no relvado o Magnusson marcava golos e eu respondia, envergonhado: "não, jogo no Sporting"? Não são dilemas fáceis para a cabeça de um jovem jogador.
Foi por esses momentos tortuosos na minha vida que entrou em cena o Francisco, não sei se na condição de avô que quer ver o seu neto apenas e só praticar o seu desporto favorito, se na condição de dirigente, que, como bom sportinguista, quer roubar talentos ao rival. Talvez, anos mais tarde, Sousa Cintra tenha arranjado inspiração neste caso de roubo claro para as suas aventuras pelo plantel benfiquista. Mas não se enganem: não sou nem fui nunca um Paulo Sousa ou um Pacheco. Se é verdade que o Sporting de Abrantes me acenava com um contrato por objectivos, recebendo a cada jogo jogado uma sandes de mortadela e um joy de maracujá, não será menos assertivo e correcto afirmar que a mortadela muitas vezes estava no limiar do prazo de validade, o pão ressequido e o joy de uma temperatura natural que afastava qualquer necessidade pós-jogo de goles decisivos. Não, o meu ingresso no Sporting Clube de Abrantes deu-se, pura e simplesmente, por ausência de Benfica e, claro, por uma precisão evidente de exponenciar o meu futebol para além dos muros do pátio da minha casa.
Felizmente, descobri, logo nos primeiros treinos com os mais velhos, que de Sporting o clube tinha o nome, os atletas eram quase todos do Benfica e os poucos sportinguistas que pululavam pelo pelado eram tidos como pouco aptos para a modalidade, como é, aliás, evidente para quem jogue à bola num qualquer campo deste país.
Fiz a carreira que pude fazer, sempre entre a vontade de jogar e a apreensão de levar vestidos uns trajes entre o pijama e o fato de presidiário. A meu favor, tenho a afirmar que, frente ao Benfica de Castelo Branco, falhei um golo isolado frente ao guarda-redes, obviamente não por falta de qualidade do meu pé direito mas porque me seria impossível escolher uma cidade ao meu clube e naquele jogo eu fui dos albicastrenses mesmo que o meu treinador não tenha dado por isso. No fim, ganhámos, e eu acho que vi umas lágrimas escorrerem pelo leão rampante que tinha no peito, não no coração, que esse estava nos peitos dos adversários.
Por tudo isto, e mais ainda que não foi dito mas talvez sê-lo-á um dia que decida escrever as minhas memórias destes tempos tristes, compreendem a minha alegria de camisola "10" de Valdo Cândido Filho quando cheguei a casa e o meu Avô me disse: "O contrato está rasgado, és um jogador livre. O Benfica de Abrantes este ano tem equipa".
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