Hoje é um dia especial, sê-lo-á sempre. O mundo mudou no dia 28 de Fevereiro de 1904, porém foi no mês anterior a esse que os caminhos para a transcendência se revelaram.
Cosme e seus amigos encontraram-se num tasco muito mal frequentado, ali para os lados de Marvila, e, numa apoteose de bebedeiras e chavascal, alguém se lembrou de ver no fundo de uma garrafa o futuro da Real Casa Pia de Lisboa - ideia que hoje pode parecer disparatada a alguns, mas que há 100 anos, e encharcados em álcool, fez todo o sentido aos visionários rapazes naquele pequeno e esconso lugar.
As notícias não foram animadoras: crimes de pedofilia, redes de tráfico humano, abusos sexuais, obscuras relações entre casapianos e notáveis figuras da sociedade lusitana e duas gotas de vinho - estas últimas não correspondiam à visão futurista mas à fraca limpeza que Adérito, dono do estabelecimento, havia dado à "garrafa de cristal", como lhe chamava, muito elegantemente, Cosme, que se encontrava visivelmente alterado - pelo nível de ebriedade mas sobretudo pelos crimes hediondos que havia observado pelo convexo espelho molhado.
Estava na altura, disse Damião, de "fundar algo que orgulhe este país de gente depravada e sórdida". Outro logo se levantou, cofiando o bigode: "A Casa Pia não é para nós, honrados companheiros, deixemo-la ao cuidado destes anormais!", e toda a gente aplaudiu, incluindo o Adérito, que levantou a cabecinha por detrás do balcão em sinal de aprovação e regozijo. Estavam criadas as bases para um novo clube. Como não podia deixar de ser: para as grandes bezanas, grandes ideias. A questão punha-se agora de outro modo: amanhã como seria? Acordariam os cósmicos prontos a içar a bandeira que a ideia tinha sustentado ou, por outro lado, de cabeça inchada e enxaquecas mil, esvair-se-ia a proposta nuns ais e uis, num "opá, isso foi da bezana, vamos mas é ajeitar a bigodaça ali ao Senhor Anselmo"?
O que distingue os grandes homens dos outros não é propriamente o que fazem no seu labor operário e burocrático, mas a capacidade de, em ressaca, racionalizar e dar corpo às geniais ideias da noite anterior. Um mero humano, fraco de espírito, aceita com resignação a informação que o cérebro no dia posterior lhe envia: "chefe, esquece lá isso, vai mas é trabalhar a ver se metes comida na boca dos filhos". Já um semi-Deus, imortal no tempo e garboso de alma, ao acordar enfia-se num banho frio, lava os dentes, cofia o bigode apurado e reflecte. Senta-se profundamente sobre as reflexões e bebe Pleno Tisanas, Lúcia-Lima, Flor de Laranjeira e Limão - ou, há 100 anos atrás, um Jagertee.
Cosme era um dos destes últimos: quando acordava, bebia Jagertee.
E tudo, de repente, ao som de chá com rum e ponderadas introspecções, começava a fazer sentido. "Quem salvará este país e esta cidade do clube que há-de ser fundado com os panos das barracas da praia de Carcavelos?", questionava-se. "Quem poderá dar aos amantes do desporto um clube popular e eterno, um clube que seja alimentado pela solidariedade entre todos, que leve bem alto o nome de Portugal ao Mundo?", perscrutava-se. E decidiu. Deu um último gole de Jagertee, pôs brilhantina no cabelo e avisou a esposa: "não contes comigo para o jantar, devo chegar tarde, vou fundar o Sport Lisboa".
Um século depois, encontramos Jaime Graça neste café em Benfica. Tem um ar cansado, os olhos como covas ou pratos de sopa. Lê a história do Benfica, tal qual está descrita em cima. Orgulha-se de Cosme e seus companheiros. Orgulha-se das várias histórias que originaram a sua própria história, 60 anos depois. Tem saudades, emociona-se, quase chora, chora. Lembra-se dos relvados ingleses onde entrou com a camisola nacional. Lembra-se do Estádio da Luz e da massa vibrante que o transbordava. Queria poder voltar, entrar pela porta da casa-de-banho, meter-se pelo lavatório e sair dentro do balneário do Benfica de há 40 anos atrás. Dar uns toques, cheirar a relva, marcar um golo e sentir aquela sensação de, num remate, num só remate, alegrar o coração de milhares e milhares de pessoas. Em uníssono, todos: golo. E, enquanto o pensava, embora o lavatório não fosse de facto nenhuma porta mágica para o tempo passado, quase fazia golo, chutando ao de leve, em efeito, no corrimão dos pés do balcão.
"Há-de chegar o meu dia", pensou. "Só espero que ninguém me esqueça ou que se recordem de mim para lá desta década e da próxima". O Benfica fez-lhe a vontade: morreu no dia em que o Benfica nasceu. E agora, para além do que foi como jogador, atingiu a eternidade no calendário. Para que definitivamente se mantenha no reino dos imortais.
2 comentários:
quem te disse que eras escritor fodeu te bem,e fodeu nos a todos.
Ah, ah, ah! Tenho de concordar com o Rui. Um grande "Hã?" para este aglomerado de letras.
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