O tempo é um líquido que se entranha no corpo e vai pingando para o chão a ritmos diferentes. Brota aos prantos, às vezes, chovendo dos braços; outras, cai devagar, com medo da queda. Não tenho noção se aquele penálti do Paneira ainda está aqui comigo ou se choveu há muitos anos. Sei que me molha, aos jorros, de tempos a tempos. E então eu sorvo dos poros aquela memória ou agacho-me de joelhos sobre as poças que a defesa de Bucci deixou a reflectir na água.
Toda a gente sabe que era para o lado esquerdo, Vítor, mas a incredulidade de ver Faustino Asprilla no relvado e os pedidos sôfregos de Gabriel Alves - "falta acção disciplinar!" - para um amarelo que não chegou, confundiram Paneira na hora da decisão. Não foi astuto, o nosso 7, porque se tivesse visto a massa disforme de cabeças que compunham o primeiro anel tinha sentido a direcção do sucesso - o público todo a contorcer os pescoços e os olhos, fazendo sinais de golo: "é para ali, caralho", como se as redes e os fumos e os fios de aço fossem transparentes -, tinha visto o golo antes dele acontecer.
Mas o tempo escoou para outro lado qualquer e, quando demos conta, em vez de um 3-1 que pecava por nulo - não escasso, mas nulo -, que devia ter sido um 6-1 ou 7-1 sem espinhas, acabou nas mãos de Bucci e depois no desespero de João Pinto num 2-1 sem verdade, desonesto porque cruel. O Benfica acabava um jogo de tareia monumental contra uma equipa fabulosa agarrado a um golinho de vantagem e a olhar para o golo sofrido com ansiedades e desperdícios.
Mas recuemos: Veloso dá de primeira em Rui Costa que recebe junto à linha, sem pressas. Ouve-se um som de fundo de milhares de gargantas aos soluços: "vai, vai, vai" que no plano geral dá "aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah", que era o som de quase todos os 90 minutos que viam o Benfica jogar. O Maestro espera que o adversário o ultrapasse e depois, sim, avança pelo meio, sempre com aquele ar de quem já está a festejar o golo e viu tudo o que vai acontecer enquanto os italianos procuram disfarçar a tristeza do que não sabem que já foi. De repente, faz um passe para Yuran e continua a correr - aquele 2-1 mágico que, por mais tácticas e prelecções que existam em laboratórios do futebol mais evoluído, destrói qualquer marcação - para receber mais à frente, já em território inimigo, e levantar a bola com a pontinha do dedão enquanto um jogador do Parma se deita no relvado da Luz e vê as costas do Maestro correrem na direcção da baliza e fintarem de anca mais outro que apareceu por ali e depois, logo de seguida, meterem na frente de Isaías o charme do golo. Isaías correu que nem um cavalo alado, ou então voou com um trote terrestre, e quando chegou à frente dos Diabos amansou a bola com um só toque e fez um golo junto ao poste que ainda é melhor porque deixa o salto de 120.000 adeptos em suspenso e passível de ser fotografado com alma e vinho e dúvida e tudo no meio.
Houve depois uma coisa coisa estranha na área do Benfica que ainda ninguém sabe bem como foi e que acabou nas redes do Neno e o árbitro validou mas não deve ter sido muito bem um golo porque disto eu não sinto a escorrer-me dos braços para o chão. Houve Helder, acho que sim, aos pontapezinhos sobre a bola e depois algo estranho e de que me não recordo bem que originou passe, depois remate e depois um golo, uma espécie de golo, e que sentimos no coração não bem como gelo mas como quando morre gente, que é o sentir do adepto do Benfica quando vê golos adversários no estádio - uma morte silenciosa, cortando veias ou sorvendo veneno.
No resumo, vê-se Nevio Scala descrente naquilo, tal era o banho de bola a que assistia e ainda por cima gratuitamente - os treinadores, mesmo os maus ou bons ou medíocres, por menos ou mais que façam das suas equipas, têm esse privilégio dos deuses de partilharem relvado com a loucura e com o génio. Nevio Scala estava assim, após o golo do Parma: dava-se por feliz ao mesmo tempo que sentia no coração aquela pontada da injustiça - quase vergonha - de andar a levar a sua equipa a solo sagrado. O público, mesmo gelado ou de luto, respirava de tal forma que punha cubos de gelo ou então mantos de veludo sobre as cabeças de quem nos visitava. Não queria ser Nevio Scala ou aqueles olhos tontos dele em suplício. "E agora que marcámos, o que é que vem aí?"
O que veio foi um fartote de Benfica, que parece que decidiu fazer uma recolha de todos os melhores momentos das centenas de equipas benfiquistas anteriores ao mesmo tempo que se despedia de nós: aquele grupo de gente de 94, vendo agora com distância e saudade, dava todo o ar de sentir de tal forma o clube que já conhecia a nossa tragédia que havia de chegar. Jogavam para escrever Benfica. Tinham pena de nós e por isso decidiram dar-nos tantos momentos e jogos e golos e jogadas e emoções, para que não nos esquecêssemos de que um dia houve este clube que nos fascinou e eternizou crianças até sermos velhos. Compraram-nos futuro naquelas épocas, decidiram deixar memórias tão fortes que nos permitissem aguentar os 20 anos que estavam por vir.
E nós comprámos, sem medos nem hesitações, tudo o que eles davam e tudo o que eles deixavam dentro de nós - foi assim, até hoje, que viemos respirando e bebendo e comendo, sempre na esperança de ver o Benfica outra vez, com estes bancos de oásis deixados na pele.
Yuran recebe na esquerda, à entrada do meio-campo adversário, com um toque faz cueca sobre o marcador e segue em frente, feliz. Mete no meio em Isaías e - oh, o 2-1! - corre para ir ao encontro da bola, o touro sertanejo não duvida, faz compasso de espera e mete no ucraniano que vai, gazela, perto da área do Parma, de primeira levanta a bola para um Isaías que veio de trás e aparece em vólei falhado e circense, a bola tabela no relvado e vai a caminho de Paneira que, por ter dois cérebros no pé direito, em vez de chutar ou inventar monstruosos caminhos, a deixa bater primeiro e depois, com a cara da chuteira, abre na direita onde João Pinto a recolhe - sem saber se dá meia-volta e remata ou se dá lugar ao improviso - e deixa para Rui Costa que estava desde o início da jogada a acompanhar o lance com os olhos e com o génio. Depois foi só rematar, simples e para dentro da baliza. Correu desalmado para a bandeirola de canto porque os putos não sabem o que hão-de fazer com o golo, é uma coisa pesada e sem maneiras o golo, não tem coreografia de sentidos, tanto pode dar pirueta como morte instantânea. Deu mãos na cabeça, um abraço do João Pinto e um tapinha do Silvino que por estas alturas já preparava o seu ofício de oficial tapinhador de jogadores.
Foi um golo que conteve dentro de si todos os golos do Benfica desde o Bermudes e Cosme até àquele segundo. E ainda hoje é esse golo que nos leva ao estádio de bandeiras e cachecóis no corpo. Vamos em busca desse Benfica até ao final dos nossos dias. E esse, por mais que tentem, nunca no-lo vão roubar.
10 comentários:
Brilhante!
Em Parma, um ilusionista do apito, a par da falta de sorte e azelhice da 1ª mão, impediu o Benfica de vencer na final o Arsenal.
Recordo-me tanto desta eliminatória. Nunca mais perdoei ao Sensini, esse careca de merda, falso argentino, aquele golo decisivo. Palavra de honra, o falhanço do Paneira tal como o penalti desperdiçado por Veloso frente ao PSV (não merecem o fardo, eles serão sempre grandes símbolos do Benfica), assim como a desatenção do Mozer (outro gigante), e aquele golo estúpido saído de um canto que nos fez perder este confronto, custaram-me tanto como os golos sofridos nos descontos no final da época finda.
Oh! Ricardo, deixe-me tratá-lo assim, deixe-me perguntar-lhe 2 coisas:
(Escrever profissionalmente = ganhar a vida com a escrita.)
1. Escreve profissionalmente? Se sim diga-me onde comprar o que escreve?
2. Se não escreve profissionalmente, digo-lhe, digo-lhe, sinceramente, que o deveria fazer, porque anda a desperdiçar talento: claro que o blog é importante mas parece-me muito redutor.
Já agora adoro o que escreve e só leio o vosso blog à 3/4 semanas.
Parabéns (por tudo o que tem escrito)
VPereira
Caro Ricardo,
Adorei o que escreveu, mas, deixe-me dizer que não estava 120 mil na Luz estavam mais de 130 ou 14o mil. Havia pessoas deitadas para conseguir ver.
Grande jogo, grande Benfica.
Grande abraço.
Miguel
Foi, talvez, o segundo jogo com mais pessoas no estádio a que assisti. O primeiro foi contra o Marselha (na final de juniores também, mas esse não conta).
Os parabéns ao Rui Costa, aquele primeiro golo, o cinismo italiano (tiveram duas, marcaram uma e Neno evitou a outra), a força atacante de Isaias, Yuran, a destreza de Paneira (que finta aquela!), a classe de JVP.
Uma jornada europeia à grande, das últimas verdadeiras, daquelas que começavam às onze da manhã, com os preparativos. Às 15 já um gajo estava no estádio, sem Colombo, sem distrações. Era só esperar pelos artistas.
Grande jogo, grande texto, Ricardo.
lembro-me tao bem de ter caido bancada abaixo no primeiro golo..e no penalty falhado.
boa posta!
Numa análise fria, a quase 20 anos de distância, o grande responsável foi o Toni. No penalty, o Paneira estava possesso a espumar da boca por pedir o cartão amarelo para o jogador que tinha feito a falta.
Não devia ter sido ele a marcar o penalty. Má gestão.
Estava em Lloret del Mar na viagem de finalistas do 12º ano.
A festa que foi por lá!! :)
Pena esse penalty.
VPereira, escrevo por prazer e nos últimos tempos quase só sobre memórias futebolísticas. Não tenho nada publicado, se é isso que pretende saber. Abraço e obrigado pelas bonitas palavras.
Que boas recordações traz este jogo e esta história. É bom ser do Benfica.
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