Não sei o que é, ao certo; se o crescendo
"Sou dooooo Beeenfiiiiica"
se é o orgulho que aquela voz transporta, como que carregando nas sílabas todos os momentos gloriosos que este clube viveu
"e iiiiiiiiiiisso m´envaideeeece"
ou
talvez a voz radiofónica dos grandes tenores do século passado
misturada com as acentuações perfeitas em português-veludo das
personagens dos filmes a preto e branco de filmes de Leitão de Barros,
Perdigão Queiroga ou Arthur Duarte
"tenho aaaaaaaaaaa geniiiiica que a qualquer engrandeeeeeeeeeeeece"
parece
que vejo a casa da minha avó, a sala ampla, portadas para a luz
branca-transparente das paredes solares do Alentejo, na mesa um bordado
minucioso, fotografias gastas, um terço, um rosário e o barbudo-mártir
ao lado dos pratinhos de pássaros, de mãos e braços abertos para a
eternidade. As asas de anjinhos de loiça querendo voar sobre os livros e
algo ou alguém, de dentro das histórias fechadas em lombadas a couro
vermelho e letras a ouro, que sai e anuncia
"Sooooou de um cluuuuube lutadoooooooooooooooor"
e
parece que vejo a sala, depois a casa toda, a rua, a vila e todas as
salas, ruas e vilas encostadas de ouvidos à escuta junto à telefonia,
enquanto Artur Agostinho canta "É goooooooooooooolo do Benfica, é
gooooooooooooolo de Eusébio" e os pássaros dos pratos aterram nos ombros
de famílias inteiras em silêncio, escutando golos e passes e defesas,
imaginando os lances, criando novos movimentos, inventando as cores que
não vêem nos botões do aparelho que lhes sopra que o Benfica está a voar
sobre o Real Madrid, que é Cavém, Coluna, de novo para Cavém, abre para
Águas, levanta de primeira para a área, Eusébio amortece, remate de
Cavém, golo
"que na luuuuta com fervoooooooooooooooooooooooooor nuuuuuuuuuuuunca encontrou rrrrrrrivaaaaaaaaaaaaaaaaaaaal"
e
o país explode vindo de um soturno silêncio de damas-de-companhia,
medos, fomes, gabardinas e chapéus nos balcões dos cafés, para um grito
que faz levantar as saias da donzela tímida que esperava no banco de
jardim o seu prometido, que faz ouvir a voz daquele velho sisudo que não
dava palavras ao mundo, faz abrir de alegria a cara do pai-de-família
que, todo metido no ar, prometeu bebidas, comidas e o que se quisesse a
metade do povo que se abraçava, se beijava, se aleijava, se atirava
contra as amarguras do tempo enquanto as portas se partiam, mesas eram
mergulhadas na intempérie de pernas, braços, cabeças, gente aos pulos,
gente aos gritos, gente aos beijos, o padeiro a agarrar na jarra de
flores e a levantá-la no ar, em gesto de vitória: "é nossa", e as
crianças, espantadas, aos gritos histéricos, a mãe "cuidado com o
deus-menino" e o deus-menino estatelado no soalho, embebido em
aguardente e ferido de morte pelas vidraças da garrafa, dos copos, das
loiças, pés atrás de pés, espezinhado o filho de Nosso Senhor e, na
parede, o barbudo parecendo rir de sangue
"neeeeeeste nooooooooooooooosso Poooooooooooooooooooortugaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaal"
não
posso dizer, não sei dizer, o que é, que me faz levantar no Estádio,
emocionar-me, ter amor desta maneira por uma ideia que não tem corpo nem
precisa de ter, por um ideal, um voo, um sentimento, uma dor e uma
alegria tamanhas sempre que oiço
"Seeeeeeeer Beeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeenfiquista"
e
transporto dentro de mim todas as memórias misturadas numa só, passado,
futuro, presente tudo numa amálgama de tempo em que vejo slides
difusos, pequenos momentos, grandes momentos, vêm-me à alma aqueles
instantes e o Estádio, aquele ecoar do golo que parecia que começava por
debaixo da relva e ia espraiando a voz, subindo lentamente pelas
escadas e pelos corpos das pessoas, era um língua de som que, quando a
bola tocava as redes, nos afundava como onda,
goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo e nós morríamos
uns nos outros, engalfinhávamo-nos uns nos outros, já sem saber se as
pernas e os braços eram nossos ou dos outros, uma massa compacta de
gente e cachecóis, bandeiras, chapéus, camisolas, sapatos, fumo,
papelinhos e o ritmo que subia, pulsava, o chão tremia, o ar vibrava e
começava a dança
"é ter na aaaaalma a chama imensa, que nos conquiiiiiiiiista e leva à palma a luz inteeeeeeensa"
e
o Sol vinha mesmo, risonho, beijar-nos, em tardes que pareciam
infinitas, tardes que amoleciam o betão e se prolongavam para lá do
possível
"com orgulho muito seeeeeeeeu, as camisolas berrantes, que nos campos a vibraaaaaaaaaaaaaaaaaaar"
e
os velhos lembravam-se de ter erguido com as mãos as vitórias e o
Estádio, os novos ouviam e queriam fazer parte, os Pais levantavam os
filhos, mostravam-lhes o que era aquilo, queriam-nos ali para toda a
vida, e os filhos mostravam orgulho e gratidão por poderem vibrar, e
pais, filhos, avôs, netos, estranhos, conhecidos, amigos, amantes,
namorados olhavam-se dentro do golo e cantavam
"são papooooooilas saaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaltitanteeeeees"
e
então calava-se tudo um instante, um pequeno instante em que 120.000
pessoas não faziam um único ruído, jogadores e adeptos numa espécie de
comunhão do silêncio, os holofotes como templos antigos, os placards
electrónicos gigantes anunciavam 00:00, cheirava a relva e a terra
molhadas, a fumos inebriantes, sentia-se um pulsar que era a própria
respiração do Estádio, tum tum tum tum tum tum, e era de dentro dele,
por osmose do betão para os pés, depois pelo corpo, até ao céu, que se
iniciava o estrondo da batucada
"Benfica,
Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica,
Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica!"
3 comentários:
120mil almas...porraaaa... somos muita totós...precisávamos um estádio novo o crl...
O "Inferno da Luz"..
"O" Estádio! Casa temida e respeitada pelos adversários que, quando pisavam aquele relvado, se sentiam grãos de areia pela magnificiência pela qual estavam rodeados.
"A" Casa, "O" Lar.
Estive no famoso jogo Benfica-Marselha, em que o Vata marca o golo com a mão.. Era uma criança, sem saber o significado que o ambiente que ali vivi ía aumentar exponencialmente com o decorrer dos anos.
Lembro-me na altura, depois do jogo, o meu Pai me ter dado a ler uma crónica de um jornalista espanhol - salvo o erro - em que o mesmo descrevia, como outsider, esse mesmo ambiente viivido naquele jogo. Um texto simplesmente perfeito..
Já o procurei por todos os cantos da casa, já tentei encontrá-lo na net para o encaixilhar, mas ainda não fui bem sucedida..
Saudades do Lar..
Tanta gente que abracei a celebrar os golos do Benfica. Quantas alegrias vividas. Momentos inesquecíveis. Belo texto, Ricardo.
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