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terça-feira, 11 de março de 2014

Histórias do fim da Arrábida

Na minha aldeia há um louco como há em todas as aldeias. A quota de loucos nas aldeias não deve superar o estabelecido em lei popular: um por aldeia, no máximo dois, se se verificarem as condições ideais para a convivência entre eles. O louco deve poder enlouquecer as vezes que quiser, quando quiser, por uma qualquer louca razão em todos os segundos da sua existência. Havendo outro igual ou parecido, o equilíbrio cósmico pode sofrer nefastas consequências; a mais evidente, claro, a possibilidade de alastrar aos outros todos, os sãos. 

Numa aldeia há só dois tipos de gente: os sãos e o louco. Alguém que se intrometa a meio caminho ou decida, por evidente estupidez, colocar-se junto ao louco, deve ser imediatamente tratado como louco, o que pode enlouquecer muita gente. É imperioso que o louco tenha acesso controlado aos sítios de copofonia e debate futebolístico. 

Pode passear-se loucamente pelo jardim, comer de forma bizarra pedaços de revistas na papelaria do largo central, passar as mãos pelos cabelos de cobre da estátua do homem mais importante da História da aldeia. O louco deve poder atirar-se para a estrada com os carros em movimento - há mesmo gente que incentiva o louco à vertigem da estrada, numa sórdida, mas sã, manifestação de louca liberdade. É admissível que ao louco sejam permitidos desvarios tais como fingir-se de cão, vestir-se de mulher sem ser no Carnaval (época onde todos podem enlouquecer um bocadinho), gritar que a lua está de facto amanteigada, imitar pinheiros, longamente conversar com formigas ou posicionar-se de cuecas a meio da rotunda a dirigir impropérios aos carros brancos que por ali passem - o louco deve poder não gostar de carros brancos. 

Cuidado é quando o louco entra, sem aviso, numa tasca onde vemos futebol. Estraga logo o ambiente, é certinho. Estavam três sportinguistas a ver o Olhanense-Sporting e a dizer mal do árbitro, compenetrados naquela importantíssima função da vitimização patológica, um vitoriano que só fala para dizer que o de Guimarães é a cópia do de Setúbal, duas senhoras acabadas de vir da pedicure das vaginas, e um benfiquista - eu. 

O louco sentou-se ao meu lado. Tirou os dois elefantes que trazia no bolso direito, colocou-os em cima do balcão, ajeitou-lhes as penas, verteu-lhes o leite para um jarro que tinha no bolso esquerdo e pediu uma mini. Ao lado da pata de um dos elefantes, estava uma espécie de carteira; uma coisa que eu uso para enfiar cartões e meter moedas. O primeiro deles, em cima de todos os outros, glorioso orgulhoso gargalhante, o cartão de sócio do Benfica. O louco atirou os 7 olhos que ele tem para o símbolo do Benfica e riu-se sem aquela moderação das pessoas sãs. Riu-se muito, gargalhou mais, ficou feliz. Abriu os braços em dança, fazendo de maestro «Jacinto, serve uma grade de minis a este amigo».

O Jacinto, profundo conhecedor de loucos, exímio especialista na arte da sociologia popular, conhecido comerciante da apurada arte da esperteza, vociferou contra o louco que não dissesse disparates «deixa o rapaz ver o jogo, Fatã, vai ver se os pássaros ainda mijam». Não havia naquele tasco um único pássaro, o que naturalmente indignou Fatã, que sentiu o poder da discriminação torpe inundar-lhe o topo da cabeça, começando a coçá-la sem grandes pudores, retirando pedaços de lenha do seu interior e acendendo a faúlha que avançou, subindo pelos átomos da taberna, até ao tecto e depois descendo aos soluços, em fogo-de-artifício. 

O Montero fazia um golo em fora-de-jogo. Fatã preocupadamente reclamou! Que não podia ser assim, o futebol estava cheio de helicópteros, hediondos horizontes e hipopótamos. Os sportinguistas riam-se uns para os outros e arranjavam nervosas desculpas «ah, finalmente um benefício». Lembrei-lhes do golo contra o Benfica. «Esse não conta, foi milimétrico». Fatã não gostou daquela falta de honestidade e enviou dois tigres da Malásia que tinha em cima da orelha, junto ao cigarro que guardava para a «grande ocasião», comer as figadeiras dos adeptos do Sporting. 

Fatã tinha e esperava uma grande ocasião. Por isso, levava em cima da orelha direita um cigarro com mais de 20 anos. O cigarro estava amarelecido, mirrado, já com pouco tabaco lá dentro. Era um cigarro comprado perto do Estádio da Luz, depois de um grande golo de Rui Águas e um voo de uma águia que voava nos céus de Lisboa antes de ser amestrada à função de faz-palmas. A grande ocasião, dizia-me Fatã, chegaria no dia em que o dia se tornasse noite sem aviso, um momento que juntasse luz e sombra, sol e lua, vida e morte, obscuro e obclaro, mar e terra, música e flores, som e vida, morte e silêncio. Nesse dia, o louco Fatã fumaria aquele cigarro. 

Até lá, cuidaria dos seus elefantes, dos tigres da Malásia que já não tinham mais ninguém nem fígados para comer, dos pássaros lá fora que sem mijar voavam e não anunciavam por educação ao Jacinto que naquela tasca o cheiro era insuportável para um pássaro. «Há-de chegar, Fatã», «só pode chegar», atirei-lhe eu enquanto comia a grade e bebia as minis. Nunca vi elefantes tão bem cuidados como os do Fatã.