Numa fase em que 90 por cento dos adeptos benfiquistas quer Saviola fora do clube e 9 por cento admite a sua permanência no Benfica, desde que numa figura meramente decorativa, compete-me dar voz aos 140.000 restantes que vêem no argentino uma clara mais-valia desportiva.
Não pretendo evangelizar ninguém, convencer os insatisfeitos e muito menos impor-lhes a minha versão da história. Ela é, como quase tudo no futebol, passível de uma subjectividade que ultrapassa as linhas visíveis do conto matemático. Concorde quem quiser, interrogue-se quem ache importante, critique o que não achar nesta narrativa lógica ou sentido alguns. O que peço é que, entre diálogos e argumentos, não se caia na banalidade das visões facciosas e dos insultos gratuitos. Se não se julgarem capazes, não comentem. Simples, prático, barato e altamente recomendável à saudinha de todos nós.
Perguntar-me-ão: ainda é Saviola um elemento fundamental neste Benfica, merecedor de ser aposta recorrente, seja a titular ou como opção vinda do banco?
Responderei: sem margem para dúvida.
De todos os elementos do plantel do Benfica, é-me muito claro que o argentino faz parte do núcleo duro daqueles que, se se pretende um futebol alicerçado na qualidade estética e simultaneamente eficaz e ganhador, têm obrigatoriamente de jogar a maioria dos jogos.
Ponho-o no patamar de Artur, Maxi, Luisão, Garay, Javi, Witsel, Aimar, Gaitán e Cardozo como os jogadores que, salvo raras excepções, deverão entrar em campo logo de início. Cada um deles com as suas características e importâncias específicas em determinado momento do jogo e em certa fase da época, mas todos eles indiscutíveis - na qualidade que podem trazer à equipa e na importância de estarem no relvado.
Saviola não representa só - embora fosse suficiente - uma qualidade acima da média, fundamentada na invulgar inteligência com que constrói e compreende os movimentos de desequilíbrio aliada à presença intimidante que o seu nome representa para os adversários; há um extra, que é toda uma mais-valia que não é aproveitada quando Saviola não joga: a relação profundamente umbilical que, em campo, tem com Pablo Aimar - uma sucessão de caminhos para a baliza, através de linhas e espaços invisíveis que só eles antecipam e posteriormente exploram e que, por não serem transparentes aos olhos dos adversários, constituem um lado do golo que ninguém conhece.
Perder Saviola - por aquilo que é por si só mas também por ter no plantel Pablo Aimar - é, portanto, ignorar as várias chaves que eles oferecem em direcção à vitória. Que o pequeno argentino seja desaproveitado naquilo que pode dar à equipa não será certamente por defeito próprio mas por parca visão de quem o treina.
Mas aproximemo-nos das críticas que lhe são dirigidas: fraca condição física, ausência de golos, displicência.
Quanto à primeira, é, quanto a mim, uma falsa questão: Saviola não necessita de uma extraordinária forma atlética para fazer o que faz bem. Aceito que se diga que perdeu algum do pique com que nos brindou no princípio da sua carreira - é verdade que sim, todos os seus movimentos evoluíram para outros espaços e outras formas de encontrar soluções, que não passam, hoje, pela iniciativa puramente individual, de rasgo, de confronto em drible. Mas essa evolução (a que muitos chamarão de putrefacção), embora faça dele um alvo fácil de abater pela crítica - quem não gosta de ver uma lebre em desenfreadas correrias? -, nada diz do seu jogo nem, muito menos, o prejudica; pelo contrário, consciente de ter perdido parte da chama do sprint, Saviola é hoje um jogador que entende melhor o conceito de, em vez dele, girar a bola. Não lhe peçam que se desunhe a correr atrás da bola; dêem-lhe antes uma equipa que saiba controlar os tempos e rodá-la em busca dos seus movimentos. E, para isso, Javier Pedro tem condição física mais do que suficiente.
Do que mais recorrentemente se fala é dos golos que (não) marca - como se alguma vez tivesse sido um matador. Mas nunca se fala dos golos que marca, não marcando. Daqueles que, por aquilo que faz em campo, surgem naturalmente. Com Saviola no relvado, é mais fácil fazer golos, disso não restam grandes dúvidas. Se a equipa não está moldada de acordo com o que deve ser um conceito colectivo - adequar às características dos jogadores uma filosofia que os potencie ao máximo -, e o Benfica de Jesus não o está, que não caiam as críticas sobre quem as não merece. Dêem a Saviola um avançado complementar (como Cardozo é), um meio-campo equilibrado, composto por jogadores com um nível cerebral e técnico acima da média, e podem crer que verão Saviola não só dar, directa e indirectamente, muitos golos como ele próprio os marcará, embora não seja isso - marcar golos - o que deve ser-lhe pedido, porque é um jogador que, pela excelência que tem da compreensão dos apoios que deve dar, dos espaços que deve ocupar e da solidariedade colectiva que possui, estará muitas vezes longe das zonas de finalização. Ainda assim, bem integrado numa equipa potenciada ao máximo (e o Benfica tem jogadores para isso), marcará sempre 15 a 20 golos por época, que foram os seus números há dois anos atrás.
A última das críticas, então, é quase pornográfica, na injustiça de tal afirmação. Se há jogador que compreende - e são poucos na equipa de Jesus - a noção de pressing colectivo, esse jogador é Javier Saviola. O que dificultará esta percepção é a forma como o faz: não necessita de andar atrelado a um jogador, pressionando individualmente, distante de todo o movimento do resto da equipa (como o fazem, por exemplo, Cardozo e Gaitán); fá-lo de duas formas: ou antecipando o espaço onde a bola cai ou, maioritariamente, condicionado o passe do adversário para zonas laterais onde sabe que a equipa é forte a chegar. Basta ver os jogos com atenção para descobrir na movimentação do argentino uma muito maior valia táctica do que em qualquer outro avançado do plantel. Por outro lado, Saviola raramente executa displicentemente (que é o que lhe criticam) passes absurdos ou em busca do gesto artístico pelo gesto artístico - em que Gaitán é rei. O que acontece recorrentemente é que a sua velocidade de raciocínio e execução não é acompanhada pelos colegas - um exemplo claro é a forma como, com espaço, Saviola executa para a frente do colega, indicando-lhe quase as coordenadas do resto da jogada e permitindo a fluidez da mesma e, não raras vezes, a bola acaba pela linha lateral ou nos pés de um adversário porque o colega parou, querendo-a nos pés. Outras vezes, faz um passe de ruptura que ninguém está à espera, aparecendo o colega em fora-de-jogo ou sem reacção ao lance, porque o não anteviu.
Tudo isto é frequente nos jogos em que Saviola está em campo e tudo isto contribui para uma percepção errada, a meu ver, daqueles que são os atributos reais do argentino. Com Ramires ficava mais fácil, com Di Maria, do último ano, ficava mais fácil, com Coentrão, ficava mais fácil. Com Gaitán, por aquilo que não entende ainda do jogo e por, esse sim, muita displicência, torna-se monstruosamente mais difícil. Com Aimar, foi sempre como respirar.