Isto - este nojo, que é a capa do jornal "A BOLA" de hoje - é resultado da inexistência de jornalistas desportivos em Portugal. Menos cáustico e mais verdadeiro: eles existem, só que não têm poder, estão arrumados em prateleiras, na horizontal ou então servem cafés aos directores e aos sabichões - aqueles que, com dois candidatos à Presidência do Sporting, fazem notícia com a vitória do candidato errado, por exemplo. Ou então aqueles que abdicam dos serviços de um cronista sportinguista só porque o mesmo respondeu à letra a um cronista portista - igualdades, sim, mas só no dia 25 de Abril e de cravo ao peito!
Há ainda aquele que não aceita, bem, uma pequena indiscrição de Gobern - quando o comentador festejou um golo do Benfica, pensando não estar a ser filmado - mas não tem problemas nenhuns, o Santos, em manter num programa de grande audiência um senhor totalmente embezanado que, além da estupidez latente que já lhe percorre as veias e a massa encefálica sempre que respira, com o álcool atinge momentos de grande qualidade humorística e até laivos de hilaridade. Mas para o senhor Santos, que gosta de rir, está tudo bem. O Senhor Gobern é que com aquele espasmo faltou ao respeito aos portugueses.
Não há, no mundo desportivo português, muitos que se mantenham direitos. Por medo, por cobardia, por ambição, por degredo mental. Basta ver que é raro o jornalista que tem clube conhecido. Geralmente o jornalista desportivo português é do Casais de Revelhos ou do Cantaria da Alçoita - isto porque são clubes que verdadeiramente mexem com o jornalista. Entende-se: o clube "lá da minha terra" passa os anos a disputar o campeonato, a Champions, a Intercontinental - quem são Benfica, Porto, Sporting, Académica, Belenenses, Vitória ao pé deles?
O jornalista desportivo português é um bicho estranho. Ele sabe de tudo o que se passa no mesmo mas, por ordens superiores e instinto de sobrevivência, tem de fingir que nada sabe. Ele tem de escrever loas ao Porto, ainda que ele saiba que o Porto é o principal beneficiado - mas de muito, muito longe. Ele vê que os penáltis a favor do Porto muitos deles são dúbios e que lances iguais nunca são assinalados a favor dos restantes clubes mas ele tem de dizer que "a vitória por 1-0 de penálti foi o resultado justo, tal foi a torrente ofensiva dos dragões".
Ele sabe que, nos momentos cruciais, o Porto leva o empurrão que o deixa quase sempre com as taças na mão mas ele não pode deixar de escrever que "estes títulos são a consequência de 30 anos de competência". Ele nunca viu o Benfica ganhar um jogo no Porto com um golo em fora-de-jogo, mas ele lá vai ter de dizer que "um lance não resolve jogos". Ele estranha que Sporting e Benfica nunca possam resolver aqueles encontros bloqueados com um penaltizinho em cima da hora, meio dúbio, ou, como na semana passada, fora da área e com o atacante do Porto a puxar a camisola do defesa adversário - ele nunca viu tal coisa. Ou se viu, foi uma vez, há muito tempo, e provavelmente num amigável ou na Taça de Portugal contra uma equipa fraca.
Ele leva os cafés aos senhores que mandam nele e ele às vezes, por ressaca, está meio fora da realidade e meio naquela neblina de cansaço e álcool e pergunta, inocentemente: "mas ó xôr director, a gente não investiga?", "a gente sabe que isto não é igual para todos, toda a gente que anda nisto há 30 e tal anos conhece o que se passa, não há forma de ajudarmos a limpar o futebol desta gente?". Pobre do sonhador, que no dia a seguir já tem lá uma cartinha em cima do portártil: "ou deixas-te de merdas ou amanhã podes ficar a dormir".
O jornalista desportivo português escuda-se com a Lei: "isso é coisa para juízes, nós não temos obrigação de julgar em praça pública". Pois não. Mas devias ter a obrigação - e até o prazer, e até a vontade, e até a decência - de querer saber e divulgar a verdade e não este lamacento atirar areia para os olhos dos outros, como se vivêssemos num mundo de cegos em que só passando as mãos pelas notícias podíamos saber e viver a realidade.
Eu quero lá saber se as escutas não são legítimas nos tribunais, caralho. Eu quero é saber o que elas demonstram e quero que tu e os teus amigos jornalistas vão atrás daquilo que elas dizem e não se elas são aceites ou não em julgamento. Que jornalismo de merda é este que se acanha perante as hipócritas e desviantes formas de evitar a verdade que os dirigentes executam nem sequer com tão grande qualidade artística? Onde vivem as vossas consciências, o vosso brio, as vossas entranhas? Perdidas entre favores e gestos de assentimento com a cabecinha olhando para o chão.
Não têm clube, mas gostam de futebol. Têm um trabalho que envolve maioritariamente um desporto específico, dizem-se amantes do futebol, adoram citar Nelson Rodrigues ou Valdano, mostram-se tão cultos e tão defensores da pureza e arte e génio e transcendência do desporto na sua forma mais primária e depois dizem-nos que não têm clube, que não sabem de nada, que não viram nada, que desconhecem como chegaram até aqui - se de gaivota, andorinha ou cegonha. Que o mundo vos é estranho, que não o entendem. Que, no dia a seguir ao Guardiola se despedir do Barcelona, nem sequer estavam na redacção quando alguém, provavelmente agarrado a um leitão e dois javalis, decidiu esta nojeira de primeira página.
Porque são todos muito puros, não têm provas de nada. Eles amam o futebol. Por eles, se fosse por eles, ai se me deixassem, agarrem-meagoraqueuvoumaeles, isto só lá vai com uma limpeza, estive quase quase para, ou muito me engano ou.
Cortem as asas. Comprem uns colhões.