quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Agro-Benfica

Uma cara é um mapa com caminhos para dentro do tempo. A velha olha a televisão com uns olhos azuis cheios de violações francesas e um nariz que se arrebita para o tecto, como se cheirasse o céu. Tem uma bengala entre as pernas, descaída, com o punho dentro da mão e a base enfiada entre as meias e os sapatinhos gastos pelos rumos da terra que enche alfaces, pimentos e curgetes nuns sacos para dar aos filhos quando eles vêm visitar o café para ver o Benfica sem fumo, só estrelas.

É possível olhar a cara da velha e descobrir viagens para o passado, descobri-la nova. Os lábios largos que agora se molham de aguardente revelam três ou quatro décadas atrás de descuidada beleza; o cabelo, ainda tão vivo, antecipa uma vez em que a velha foi a Lisboa ver o Eusébio, deliciando plateias naquele terceiro anel com os homens atrás a fingirem dores de pés para sentirem o toque ao vento dos seus cabelos de índia; os olhos que agora se embaciam, antes tão cheios de vida e fogo. Olhamos a velha agora, com tudo - lábios, cabelo, olhos, nariz, mãos - deformado, exageradamente aumentado, e só com ternura bastante conseguimos ver a linda mulher que a velha já foi. Hoje só traços, braços e gestos negros, cheia de fim, quase adormece com a cabecinha junto à janela enquanto o Gaitán faz um estranho rodopio de anca e marca golo.

A casa está escondida nas sombras das árvores e da noite. Há céu em cima cheio de pontinhos de luz que lembram mortos ou parecem lembrar mortos que nós vemos nas coisas aquilo que pensamos ver. Entro em corrida pela horta, percorro o socalco mais alto e sinuoso que olha de cima para os legumes e por dentro para as árvores. Com o Diego Cigala a abrir estéreo para o mundo, atiro-me para o escuro da lama, terra deixada a repousar com rega, e sujo a cara, as pernas, o cérebro com a humidade da noite. Viro-me e olho as estrelas. O corpo tão pouco importante, só o ar e a distância daqui para as nuvens e depois das nuvens a plasticina que faz de fronteira entre o mundo e o resto. Está na hora de ir ver o Benfica.

Limpo a cara de bróculos, meto água nos braços, visto roupa de café (t-shirt, calção, havaiana), despeço-me da mulher e dos filhos (dois cães que latem contra a lua) e avanço, cheio de memórias de legumes e tinto, pelos caminhos da aldeia a meia-luz, só sons e sombras de fantasmas que já morreram e viveram dentro daquelas casas que agora me olham com três séculos de tormentos. Os passos ouvem-se no silêncio das ruas, a parte de trás dos chinelos quando bate na pedra faz um eco de anúncio, estou quase a chegar. Vou em frente, perco-me a ver águias e leões de mármore, cheiro ramos de laranjeiras, roubo laranjas e meto no bolso três quilos de jasmim que além de estarem nos pátios avançam pelo ar como perfumes de átomos. Tudo é jasmim, laranjeiras, escuridão, lua e bebedeira.

Quando chego ao café do Senhor Ferreira, passo pela chuva de tiras de plástico às cores que anunciam a meteorologia: está tudo bêbado, incluindo o cão, que passou duas horas a debicar amêndoa amarga dos dedinhos do Eleutério, rapaz tido na aldeia como pouco avisado. Olham-me de lado, estranham-me, sussurram, segredam-se, conspiram. Abro os braços repletos de Rogério "Pipi" e grito: "VIVÓ BENFICA!", e de repente, sem que saibam da Taça Latina, já fizeram de mim mais um igual entre iguais. Peço um uísque, sento-me junto à velha dos olhos azuis das invasões francesas e, juntos, festejamos o calcanhar em suspensão do Nico Gaitán.
 


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