terça-feira, 16 de junho de 2015

Jorge Jesus e o fim de um ciclo

"Cada uno es como Dios lo hizo, y aún peor muchas veces."
Miguel de Cervantes, em El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha


Terminou um ciclo no Benfica. Num clube habituado a mudanças de treinador desde sempre, independentemente do sucesso desportivo, Jorge Jesus foi o treinador que esteve por mais tempo ao leme do comando técnico encarnado desde Janos Biri (1939-1947). Tendo por base um estilo autoritário e apoiado por uma estrutura que disponibilizou mundos e fundos nunca antes vistos para o lado da Luz e que o segurou mesmo nos momentos mais difíceis, Jesus estabeleceu-se e entronizou-se dentro do organograma benfiquista, ganhando admiradores dentro e fora de portas, sem no entanto conseguir estar perto do consenso quanto ao seu valor enquanto treinador.

Não sejamos hipócritas: Jesus é um bom treinador e não deixou de o ser por ter assinado pelo Sporting. Deixou obra feita no Benfica, tanto a nível de títulos conquistados, com a vitória em metade dos campeonatos disputados, score que era o habitual na era pré-1994, mas também no que à mudança de mentalidade diz respeito, com maior exigência pelo culto de vencer, sem esquecer os activos desportivos que valorizou. Dispôs de planteis de grande qualidade, mais precisamente entre 2011/2012 e 2013/2014, mas foi também com um plantel globalmente fraco, com muitas limitações em diversas áreas do terreno, que se evidenciou (precisamente esta época), tendo levado a equipa à conquista do título. Não o disse atempadamente, mas o campeonato conquistado em 2014/2015 tem, mais que qualquer outro, o dedo de Jesus. Foi ele o operário, o engenheiro e o arquitecto do título conquistado. Perdeu 7 titulares em relação ao onze habitual da temporada anterior (ficaram apenas Maxi, Luisão, Gaitán e Lima), perdeu algumas segundas linhas muito importantes (Cardozo e André Gomes por transferência, Sílvio e Amorim por lesão), foram-lhe dados jogadores que em termos qualitativos não chegavam nem perto dos calcanhares dos seus antecessores (excepções honrosas feitas a Júlio César e Jonas) e assistiu a um investimento financeiro histórico do FC Porto, que construiu um dos melhores planteis que me lembro de ver nos azuis-e-brancos. O Benfica investiu muito dinheiro no mercado de transferências, é um facto, mas investiu mal, sobrevalorizando muitos dos atletas contratados e acabando por ter como verdadeiros reforços na real acepção da palavra dois “velhotes” brasileiros que vieram a custo zero. Jesus, no entanto, conseguiu com o plantel que tinha (sem esquecer a “abençoada” eliminação das provas europeias) atingir o topo do futebol português uma vez mais, contra todas as expectativas. Contas feitas, em termos desportivos, o balanço com Jorge Jesus ao leme do Benfica é positivo, ainda para mais se tivermos em conta o padrão habitual de troféus conquistados nos anos que o antecederam. Jesus tem mérito e devemos saber reconhecê-lo.

Mas não esqueço as limitações, os erros e as falhas que o impedem e continuarão a impedir de chegar a um patamar de verdadeira excelência e qualidade. A começar pelas relações humanas. Um treinador, nos dias que correm, mais que um teórico ou um mestre da táctica, tem de ser um condutor de homens. Jesus tentou sê-lo não através do exemplo ou do carisma mas sempre na base da arrogância e de uma disciplina férrea que asfixiava tanto os colegas que com ele trabalhavam como os seus próprios jogadores. As embirrações, a política de filhos e enteados, as atitudes menos dignas e os episódios de guerrilha interna com alguns jogadores são, uns mais que outros, até pelo encobrimento que a Direcção do Benfica sempre tentou dar a estes casos, conhecidos: desde o inqualificável despedimento televisivo de Quim à inexplicável ostracização de Aimar e Nuno Gomes, passando pela embirração constante com Nolito e Capdevila, ao ignorar das virtudes e talento de Bernardo Silva, a guerra que levou ao afastamento (e perda de um campeonato?) de Rúben Amorim, aos misteriosos desaparecimentos de Urreta, Sulejmani e Sílvio, a subutilização de Enzo Pérez (2011/2012) e André Gomes são alguns dos casos mais flagrantes que assim de repente me assaltam a consciência. Quando se ganha, tudo é esquecido. Mas quando se perde, a frustração alastra e a raiva desperta, como ficou bem patente nas reacções de Enzo e Cardozo às finais perdidas em Amesterdão e no Jamor, em 2013. Mesmo com os seus pares, Jesus não teve o comportamento que é expectável e digno de um treinador de futebol, ainda para mais no Benfica. Quantas vezes não foi Raul José, alvo da fúria injustificada e da ira mal digerida de Jesus? E como esquecer o episódio em que Jesus se agiganta, vociferando impropérios contra o apaziguador Shéu, uma lenda viva do clube, com mais de 45 anos consecutivos de casa, sem motivo aparente?

Sendo Jesus um treinador competente no capítulo do treino, há que lhe reconhecer a incompetência na escolha de jogadores ao longo destes seis anos. Se fizermos um balanço no que diz respeito às contratações do Benfica na era Jorge Jesus, verificamos que em termos de qualidade e de rendimento, os jogadores indicados ou escolhidos pelo treinador se revelaram autênticos flops. Se pensarmos nos 20 melhores jogadores que passaram pelas mãos do técnico na sua estadia na Luz, é fácil verificar que nenhum deles veio por indicação de Jesus. E havendo no Benfica uma estrutura profissional de scouting do mais competente que há, nunca percebi a necessidade de dar tanto poder a Jesus numa área de decisão que ele manifestamente não domina. Na minha concepção de futebol moderno, não há a obrigatoriedade de um treinador ser um prospector de talentos. Há gente especializada que fará esse trabalho melhor que qualquer treinador. Cabe ao treinador... treinar. Assim, simples. Sem ostracizar os jogadores que lhe são disponibilizados, como infelizmente aconteceu no Benfica, onde atletas manifestamente de maior qualidade foram preteridos face a outros incomparavelmente inferiores mas que foram trazidos pela mão de Jesus (como se explica a insistência em craques como Emerson, Bruno Cortez, Éder Luís, Ola John ou Artur quando qualquer leigo vislumbrava a existência de melhores opções à disposição do treinador?).

É toda esta arrogância que impede o auto-proclamado mestre da táctica de aprender mais para poder atingir o topo. Para tal, teria de deixar de ser casmurro e querer aprender com os próprios erros e com os outros, algo que sempre teve relutância em fazer. E para atingir o topo tem de cumprir duas metas que sempre teve dificuldade em alcançar na Luz: derrotar os mais fortes e não fraquejar nos momentos decisivos. A primeira premissa é exemplificada com os sucessivos falhanços que teve na Liga dos Campeões, prova na qual conseguiu a qualificação para a fase a eliminar em apenas uma ocasião em cinco tentativas, muito por culpa do parco estudo que fez dos adversários e da incapacidade de adaptação do modelo de jogo num contexto onde encontrava adversários muito mais competitivos do que aqueles da Liga Portuguesa, sem no entanto serem obrigatoriamente melhores que o próprio Benfica. A segunda premissa (fraquejar nos momentos decisivos) ficou bem evidente quando desperdiçou a hipótese de conquistar dois campeonatos nacionais (2012 e 2013), uma Taça de Portugal (2013) e duas Ligas Europa (se bem que aqui não tivesse a obrigação de as ganhar), muito por culpa de uma série de erros já aqui apontados. Em 2012, após ter concordado com as saídas de Enzo Pérez e Amorim, transformou 5 pontos de avanço em 3 pontos de desvantagem no espaço de três jornadas, fruto de embirrações, decisões técnicas muito questionáveis e com um toquezinho simpático das arbitragens. Em 2013 perdeu tudo da forma mais dramática possível, demonstrando uma enorme falta de arcabouço mental para segurar a equipa quando mais precisava de um treinador.

Em 2010, quando se soube que Jesus mantinha conversas paralelas com o seu amigo de longa data Jorge Nuno Pinto da Costa com vista a uma transferência para o FC Porto, afirmei peremptoriamente que Luís Filipe Vieira não deveria ceder à chantagem negocial do treinador e não lhe deveria renovar o contrato se tal implicasse o pagamento de um salário quase incomportável para os cofres da Luz. Vieira decidiu-se pela renovação do treinador campeão, mas teve de lhe oferecer os pedidos 4 milhões de euros anuais que toda a gente sabe que auferia. Fui contra não só pelo facto de ser uma quantia absurda para a realidade do Benfica como também para a qualidade do treinador em questão, mas também porque esta chantagem salarial em nada se coaduna com a forma de ser ou de estar do Benfica. Por mim, Jesus não deveria ter visto o seu vínculo renovado em 2010. Não seria de esperar, até por uma questão de coerência nesta matéria, que adoptasse uma posição diferente neste caso. E não adopto. Luís Filipe Vieira fez bem em não ceder às novas pretensões salariais de Jesus e em não entrar em guerra com o Sporting pelo treinador. Estou totalmente ao lado da Direcção do Benfica nesta matéria. Ainda para mais se tivermos em conta que as visões de projecto futuro da Direcção e do agora ex-treinador para o clube são praticamente antagónicas.

Jesus é passado. As suas vitórias, as suas conquistas, as suas embirrações, as suas casmurrices, os seus erros tácticos, tudo isso é passado. Resolveu ir para o Sporting porque foi a proposta financeiramente mais atractiva, porque se mantém em território nacional, consciente que é das suas limitações enquanto treinador e que o impedem de dar o salto, e porque não tem carácter nenhum, como evidenciou ao longo de seis anos. E se no Benfica houve mais de 100 anos antes de Jesus, muita vida haverá para além dele.

6 comentários:

Anónimo disse...

Excelente análise. Só peca no final quando dá um tiro ao lado relativamente às razões que levaram Jesus a sair do Benfica e ao oferecer mérito ao presidente "que fez bem em não ceder às novas pretensões salariais de Jesus".

Jesus não saiu do Benfica porque pediu um salário alto. Jesus saiu do Benfica porque o presidente decidiu (já há largos meses) que Jesus já não era o seu treinador.

Para o presidente tornou-se impossivel "controlar" Jesus e mante-lo como seu aliado na sua politica desgovernada e aleatoria de contratações, com camionetes de jogodores a entrar e a sair todos os anos entre Julho e Agosto, destruindo todo um trabalho feito época após época. Jesus fartou-se de ser o treinador que "estava ali para arranjar soluções" (palavras do próprio) para os buracos extemporaneos que LFV lhe ia abrindo nos planteis, defeso após defeso.

Por isso e para isso LFV vai buscar o seu amigo Rui Vitória, que lhe garantirá esse á-vontade nos negócios de verão e inverno.

Bruno disse...

Estou triste , nao vejo nada de bom no futuro do Benfica , so vejo todos os dias más noticias , primeiro a saida de JJ , quer queiramos quer nao ainda ontem estava a ver o Chile e a lembrar o futebol espectaculo do Benfica velocidade nos ataques , jogadores em constantes movimentaçoes , pressao alta , é verdade que nem sempre se ganha mas o Benfica em CASA nao perdeu um unico jogo , e quando a estrutura acha que o JJ ja nao é necessario so para trazer mais um Fernando Santos( eque nem o Marco Silva foram buscar) , sem provas dadas , e depois vejo o Maxi um dos que tem mais mistica a querer ir embora , diz muita coisa e como nao chegue , ainda levamos com dois marroquinos que oxalá me engane so veem para destabilizaar mais o Benfica e o resto das contrataçoes sao todas duvidosas , quando vejo o Benfica como o clube que mais vendeu e o passivo mantem-se na mesma ou praticamente igual e vejo que o orçamento so foi aprovado por 266 socios e mesmo assim uma percentagem votou contra , Deixa me muito apreensivo , principalmente quando o sr LFV ainda ontem ou hoje disse que ia ser muito dificil este ano , eu sinceramente so desejo que no final da proxima epoca esteja feliz por todas as ''Vitorias'' no meu SLB , mas nao falhei quando mandaram embora o Toni e nao falhei quando mandaram embora o Jose Mourinho e em todas elas senti exactamente o mesmo ... I 've a bad feeling about this !! Oxalá desta vez seja eu que esteja errado!!

Antonio disse...

Touché!

Rukka disse...

"Arcaboiço".

Jesus no sporting tem liberdade para escolher jogadores
vai ser lindo, vai....

Ricardo Fernandes disse...

Gostei muito deste texto. Partilho esta opinião. Não sei claro está se foi Jesus que se quis ir embora, se foi empurrado, mas é certo que concordo em todos os outros detalhes, sejam nas mais valias, sejam nas insuficiências.

Vem aí um novo ciclo e teremos certamente um Sporting mais forte. Vamos ver como se comportará a luta de egos no outro lado da segunda circular.

VC disse...

Bom post. Estou de acordo. Estes seis anos do JJ, poderiam, mas não foram, os melhores, de sempre, anos do Benfica. Foram bons, sim, por causa do JJ, mas não foram os melhores, por causa dele também.
Dois campeonatos e 1 taça perdidos estupidamente(eventualmente 1 taça europa, ainda que não considere total responsabilidade do JJ) calariam, definitivamente, para sempre os adversários do Benfica e os critico do JJ, onde me incluo.

1 abraço, VC