CRÓNICA DA MINHA GESTALT FUTEBOLISTICA
Durante muitos anos desejei que o meu benfiquismo tivesse sido passado por veia familiar. Sócio desde o nascimento! Que bom que teria sido, poder contar com este registo. Hoje tenho orgulho em dizer que sou um benfiquista de geração espontânea. E é precisamente um pouco do início dessa estória que quero partilhar.
Nasci longe de Lisboa, na terra do rei. Quando vim para Portugal continental tinha cerca de cinco anos, mais coisa menos coisa. A minha família ligava zero ao futebol. Zero mesmo, zero absoluto. Não me lembro de ter, na infância, uma única conversa que fosse sobre futebol. Nem com o meu pai, nem com a minha mãe, avós, tios ou tios avós. A minha família era um caso raro de afutebolose aguda.
Vivi com a minha mãe em Évora até 1979, numa época intensa de luta política, rodeado por gente activa, reivindicativa e praticante da descentralização teatral. No meio destas pessoas incríveis, que tocavam, cantavam, dançavam e representavam, ouvi falar do Brecht e do Ibsen, do Marivaux, do Molière, do Gil Vicente, do Peter Brook e do Giorgio Strehler… Foram estes os meus primeiros cromos. Muita música também, muita literatura. Mas de bola, nada! E, acreditem ou não, nem na escola eu ouvia falar de futebol. Sabia o nome de alguns clubes, obviamente, estava consciente da existência do jogo. Claro que eu tinha ouvido falar do Benfica, algures. E do Lusitano e do Juventude. Mas o espaço de imaginário ocupado pelo tema era diminuto.
Com o meu avô paterno era a ciência, a natureza e a biologia (obrigado meu querido avô Bastos). Já quando ia para o meu pai, de fim de semana, era o jornalismo e os jornalistas, era a literatura, a pintura e também a política. Mas… e a bola, caralho?
Não me interpretem mal, eu adoro ter nascido e crescido num meio de intelectuais e de artistas. Não fiquei apolitizado nem indiferente às grandes questões sociais. Mas é-me por demais evidente, hoje, que havia algo de profundamente errado na minha formação. Faltava-me a bola. Faltava-me o meu clube! E eu nem sabia o quanto.
Vim viver para Lisboa com nove anos, para perto de Sete Rios. Mudei de escola, obviamente, e de colegas também, e fui fazer a quarta classe num colégio pequeno, que ficava mesmo ao lado de minha casa, na Professor Lima Basto. A Seara. É verdade, foi um trocadilho em forma de figura de estilo. Saí da terra das searas a perder de vista para uma seara figurada. E tenho ótimas recordações do tempo que passei nesta escola, porque foi nela que se revelou o meu grande amor pelo Glorioso.
A Seara era uma escola de ideologia de esquerda, com ambiente simpático e voluntarioso, mas a orientação pedagógica tinha contornos de um verdadeiro tiro no pé. Na segunda feira fazíamos uma composição sobre o 25 de Abril e na terça um desenho sobre o 1º de Maio. Na quarta feira, tudo ao refeitório para um testemunho vivo de alguns sobreviventes do Tarrafal. Instalava-se um cenário dantesco ao penitenciarem-nos, inadvertidamente, com uma culpa que tinha outro pai. Criancinhas a chorar baba e ranho com a tragédia (real) destes senhores, desde a infantil até à quarta classe, passando pelas auxiliares de educação e pelos professores. Foram meses de pesadelos com a puta da “fritadeira”. E depois, na quinta feira, era dia de ouvir músicas revolucionárias, fechando a semana com uma visita ao conselho da revolução. Para que se entenda a intensidade, as férias da páscoa eram passadas numa cooperativa alentejana, em plena reforma agrária. Leite com nata, vómito, estrume, feno, terra, muito calor e um ataque de asma dos antigos. Nunca aprendi tão pouco na minha vida, admito, no que aos temas canónicos da escola se refere. No entanto, relativamente ao futebol, aprendi o principal.
“És de que clube?”, perguntou-me o João Pedro logo no meu primeiro dia de escola. Sou de que clube?, pensei. Mas eu não tenho um clube. Nunca tinha pensado nisso de ter um clube. Nunca me tinha passado pela cabeça que precisava de ter um clube! pelo menos não com toda aquela assertividade do João Pedro. Outros colegas olhavam para mim, curiosos. “Então? Qual é o teu clube?” Eu percebi que era uma coisa muito importante, esta de se ter um clube. Era o aluno novo, e havia uma certa expectativa sobre o meu enquadramento. Ele adiantou-me que a terceira (classe) era do Sporting e que a quarta era do Benfica. Agora que penso melhor nisso, é um fenómeno estatisticamente improvável, no mínimo, haver uma (quase) unanimidade clubística definida por ano de escolaridade. Mas, com uma ou outra excepção, era este o estado das coisas na Seara, naquele ano lectivo de 79/80. E se alguma coisa me falava alto nessa altura era mesmo a questão da solidariedade. Em retrospectiva, este foi um dos momentos mais felizes da minha vida. Disse, pela primeira vez, eu sou do Benfica. Eu sou do Benfica, é claro. Sou do Benfica. E de cada vez que o dizia, de cada vez que, pelo verbo, renovava a existência destes votos de amor eterno, algo de grandioso me foi crescendo dentro do peito. Um sentimento de pertença, de glória e de amor incondicional, que me inundou a alma. Sou benfiquista, rematei triunfante. Boa!, disse o João Pedro. Toma lá estes cromos.
Passou-me uma série de cromos repetidos de uma colecção com desenhos de jogadores da primeira divisão, em caricatura. Que beleza de objectos. O meu coração aqueceu ainda mais. Cromos? Eu adorava cromos. Eu ainda adoro cromos, porra!!! E estes eram incríveis. Apresentavam-me uma série de homens com bigode e fartas cabeleiras, vestidos de equipamento. A pena que tenho, de já não ter esta caderneta. Shéu, Bento, Bastos Lopes, Alhinho, Alberto. O Humberto Coelho, um senhor central de veia goleadora, com sete golos nessa época. Carlos Manuel, Toni e Pietra. O Chalana e o Diamantino, ainda muito novos. O Reinaldo, “das Doce”. O Nené, com os seus trinta golos! Maravilhoso Nené. Todos queríamos ser Nené na hora do recreio. Mítico, este plantel de sonho.
Julgo que toda a gente estará familiarizada com as figuras associadas à psicologia da Gestalt. Um dos exemplos clássicos é a imagem que ilustra esta crónica. Vemos, ao início, apenas uma das representações, por exemplo, a da cara da velha. Mas depois, quando vemos a figura da mulher mais jovem (se começarmos por ver a velha) nunca mais conseguimos deixar de a ver, sempre que quisermos, certo?
Pois foi assim comigo e com o futebol. De repente, de certa maneira, a realidade enriqueceu. Quase tudo tinha a ver com o Benfica, direta ou indiretamente. Instalou-se, até hoje, uma profunda identificação com o encarnado, que passou, desde logo, a ser a minha cor favorita. Até então, se me perguntassem qual era a minha cor preferida, acho que teria dito a “cor de pele”, sem hesitar. Apenas por um critério de raridade. A caneta “cor de pele” era a mais valiosa das canetas, porque dava uma certa verosimilhança às caras e as mãos. Um conjunto com 24 ou 36 canetas de feltro tinha sempre uma ou duas cores que cabiam neste critério. Tudo isso desapareceu. Nem foi preciso rever a minha bolsa de valores cromáticos. Tal como Lorca, preferindo a prata ao ouro, o meu mundo passou a ser imediatamente dominado pelo encarnado, que é a mais bela das cores. A partir daí, se jogo ao monopólio, ou a qualquer outro jogo de tabuleiro, reclamo rapidamente, antes de todos, o peão “do Benfica”. Os carros vermelhos ganharam outro encanto. Um mero apontamento vermelho num dos equipamentos, em jogos entre equipas estrangeiras, era suficiente para determinar o meu favorito.
E em casa, ao almoço e ao jantar, só falava do Benfica. Sem o querer, parte da minha família ficou mais consciente do futebol.Passei a ver jogos com o meu pai. Os meus irmãos continuam a não gostar de bola, mas, se lhes perguntarem de que clube são, dir-vos-ão que são do Benfica. A Renata, filha da minha madrasta, é benfiquista também. Trabalha em Paris, há muitos anos, e é casada com um francês. Um dia diz-me que o meu sobrinho Sebastião é do Benfica. E que é por minha “culpa” que ela ficou benfiquista, e ele também. Que toda a gente lhe diz “Ah, ok, porque a tua mãe é portuguesa, mas em França torces por quem? PSG?”, ao que o Sebas responde que só tem um clube. O Benfica!!!
Além do orgulho, este jovem sócio do Glorioso facilitou-me também os natais.
Regressando àquele ano de 1980, a primeira coisa que fiz quando regressei a Évora de férias, depois de ser agraciado com o dom do benfiquismo, foi perguntar ao meu melhor amigo se ele tinha clube. Claro, respondeu-me o Jojó, eu sou do Benfica. Nem queria acreditar. Anos e anos a saltar muros e a brincar aos exploradores, nunca tínhamos falado de bola. E afinal, ele era do Benfica. Continuei a indagar pelos outros elementos do meu grupo de amigos. Eram quase todos do Benfica. Ora bolas, eu nunca tinha reparado nisso antes. Alguns colegas da minha mãe, actores? Benfica, Benfica, Benfica. Afinal, a bola esteve sempre lá. Era eu quem não a via. Não deixei de ver a velha, obviamente, nunca neguei educação nem valores. Mas esta Gestalt absolutamente fundamental na minha vida, este complemento essencial da bela figura jovem e glamorosa que me acalma os olhos e alma, tinha vindo para ficar.
13 comentários:
Não e a 1ª. vez que venho a este blog...mas confesso que não posso deixar de dizer que acho este artigo "delicioso"...
Demonstra-se que se pode glorificar o SLB de muitas maneiras e de muitas formas.
Obrigado!
rosario
Tão bom este texto! Só um reparo (pequeno) é Diamantino (maiúscula), ele merece!
Obrigado pelos comentários, Rosário e anónimo. Gralha prontamente corrigida :)
Parabéns pelo post. Para além de muito bem escrito conta uma história que a maioria de nós guarda religiosamente num cantinho da nossa memória. A primeira vez que dissemos "sou do Benfica!".
Sempre excelente! abraço!
Parabéns pelo artigo, fiquei com pele de galinha.
Cumprimentos e viva ao Glorioso Benfica!!!
Parabéns. Below Texto.
Fred
Tudo Por Ti Benfica!
Deixa-me agradecer este texto que classifico de Epopeia em Prosa se é que me é permitido!
Obrigado pelo eloquente hino ao benfiquismo! É isto o Benfica e o Benfica somos nós!
Viva o Benfica!
Excelente
Adorei! Identifiquei-me! Até já tenho um nome para o que sou: benfiquista de geração espontânea!
É o que muitos de nós somos, de "geração espontânea"! Os meus filhos já fazem parte de uma tradição familiar. É tudo maravilhoso e plural, no Benfica!
Achei este post fantástico. Eu já sou da geração de benfiquista de nascença por ser filha de um benfiquista de geração espontânea. Escrevi hoje um post no meu blog http://diario-de-um-benfiquista.blogspot.pt/ onde fiz referência a este post e blog por ter gostado muito.
Saudações Benfiquistas!
Obrigado pela referência e pelas suas palavras, Ana. Como já disse antes, os meus filhos já são de geração, tal como a Ana. Primeiros de muitos. Viva o Benfica!!!
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