quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Tributo ao Delegado Capristano

Há um plano de morte: fotografar todos os campos pelados em abandono. Duas balizas de tinta desfeita, poças de ferrugem nos cantos, um resto de rede esquecida ao vento, os metais que a amparavam junto à terra em dedinhos curvos, como se fossem assim: e a mão flecte toda e curva-se, como se alguém falasse de outrem: é má rês.

No centro do campo, se houvesse cal, podemos imaginar o lugar de onde a bola parte: pontapé de saída. Há dois tufos de erva de meio metro que se posicionam na zona à entrada da área, perfeito para o livre directo. Alguém passa ao fundo, atrás de uma baliza, mas não vem jogar nem ver um jogo: segue em frente, leva flores e há-de chorar em frente a uma lápide. O campo de futebol é próximo do cemitério que é perto de um sítio sem casas: ou vais à bola ou vais morrer um bocadinho.

Hei-de fotografar todos os campos abandonados: pelados, ervados, de pedras, de lama, de piso sintético, todos esquecidos à espera de uma bola. Passa-se ali, sem aviso, e uma muralha pequena de antigas bancadas aos soluços, caídas umas contra árvores, outras ainda persistindo no orgulho de uma memória que projecta para o futuro: há-de vir gente. Mas a gente não vem e cai a tarde no banco de suplentes de um verde ferrugento onde ainda pode ser encontrada, se a busca for exímia, uma braçadeira de "delegado" às listas - é colher uma pá na confusão da churrasqueira e escavar exactamente na direcção do segundo banco a contar do lugar do mister. 

"Shôr Martins, acho que é altura de meter o Costa" e foi neste momento em que o Delegado Capristano achou que devia intrometer-se nas questões técnico-tácticas, normalmente só das competências do mister Fernandes, que a braçadeira caiu desamparada no lamaçal daquele dia invernal e acabou pisada pelo Santos que, chateadíssimo pela precoce saída de campo, submergiu a orgulhosa faixa que o Delegado Capristano envergava no braço direito, lavada e passada a ferro no próprio dia do jogo pela afável mulher que, além desse ofício, lhe tinha preparado um repasto à base de feijões que o venerável dirigente fazia por esconder, entre o Aveiro e o Fanecas, contorcendo-se contra a madeira do banco e soltando uns pequenos desvarios sonoros, normalmente aquando dos lances mais perigosos, em que a falange se levantava e gritava um suspiro cósmico que não dava em nada, além do cheiro nauseabundo que ficava naquele cubículo no qual os jogadores se mantinham, como se fossem tropas.

É uma pena, de facto, que nunca mais ninguém tenha visto a braçadeira do Delegado Capristano, se não pela chatice de perder o estatuto pelo menos pelos gritos histéricos que teve de ouvir do Presidente Varela: "e quem é que controla o orçamento, caralho?" e todos baixavam as orelhas, entregando uma moedinhas de solidariedade no chapéu de cowboy do dirigente-mor.

E agora tudo isto tão esquecido, nesta pasmaceira de pedras e tufos de ervas. Não há jogadores nem treinadores, os adeptos cresceram, foram viver e morrer para outros lados e aquele campo deixado a um espasmo lunar e a uns visitantes ocasionais para uns peões ou adolescentes sedentos de amor num balneário de porta entreaberta: não há chaves para o tempo.

Hei-de fotografar todos os campos abandonados, sem instagram porque seria redundante e porque eu não tenho instagram. Apanhar pedaços de panfletos comemorativos de festas grandiosas nas quais se vendiam bagaços e cerveja, torresmos, dores de alcoolismo e neblinas de Domingos. Recolher pitons perdidos entre os calhaus e uma voz de alguém que, sem qualidades técnicas nem tácticas, um dia perdeu uma braçadeira na confusão da entrada do Costa pelo Santos.

2 comentários:

BENFICAHEXACAMPEÃO disse...

Há textos que são humanidade, vida crua, pedaços de gente verdadeira... isto é o meu mundo - gente verdadeira, memórias de vida "perfeita"... voltaremos a ter um mundo assim???

rogerAjacto disse...

Sei de uns quantos "campos da bola" que podias fotografar, que existem exactamente assim como descreveste. Nuns até cheguei a rasgar a carne, por baixo dos calções, aquela típica marca do abnegado jogador de pelados, que faz carrinhos "no matter what". Os putos hoje já não sabem o que é isso. Gostei muito deste pedaço de prosa. Abraço.