terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O relvado e o golo do Benfica





 
Ninguém quer saber do relvado para nada. Fica para ali atirado verde fluorescente - excepcionalmente, no caso do Sporting, areal da praia de Carcavelos misturada com a erva do Parque dos Poetas – para uma solidão de espera e queimaduras de holofotes. Ninguém quer saber se o relvado tomou os medicamentos, se se alimentou decentemente durante o dia, se fez a sua corridinha matinal, se viu os filhos, se foi ao ioga.

As pessoas entram no estádio já todas com muita pressa e pouco tempo. Aquela luz que incide directamente no corpo da relva será saudável ou, oncologicamente, estaremos perante mais um assédio e agressão? Se não fossem os tratadores e os atletas que a meio do jogo, num lance mais emotivo, compõem tartes relvadas que se desorientaram, alguém alguma vez se preocupa em obsequiar um toque prostático ao relvado?

E, no entanto, reluz, rebrilha, reacende-se. Lembro-me disto: percorrer, do carro até entrar nas bancadas, dois a três quilómetros de benfiquismo aos socalcos: ficávamos por ali, avançávamos, recuávamos, abrigávamo-nos nas esteiras de tascas inventadas de bancos de madeira e nódoas circulares de copos de vinho que se iam acumulando fazendo símbolos enviesados dos Jogos Olímpicos. Tudo era Benfica e, mesmo com Trina de Laranja, embriagava-me.



Havia muitos fumos libertados por fogueiras, charutos e febras; odores de coisas ao lume, de perfumes baratos, de esperança. Ouviam-se vozes, tantas e todas em cima umas das outras, de gente feliz ou quase feliz ou ainda assim feliz que compensava mágoas na visão das luzes de um estádio que crepitava lá ao fundo. Pediam-se doses industriais de comida, bebia-se muito, conversava-se mais e ainda não havia rulotes nem televisões em rulotes que explorassem os ângulos analíticos do pré-jogo. Era mais do sangue e do vinho e de uma família sentada ao longo de um banco corrido, ensinando o Benfica a uns e outros.

Houve um tempo em que as repetições só existiam no final do jogo e nunca onde comíamos; víamos os lances polémicos através dos vidros dos autocarros dos que vinham de longe: Régua, Porto, Coimbra, Chaves, Évora, Beja, Figueira da Foz, Portimão, Cadaval, Viana do Castelo, Torres Novas, Portalegre, Castelo Branco, Santarém, Boticas, Guimarães, Elvas, Mértola e tantos outros sítios condensados por aldeias que se transportavam até às cidades.

Terá sido penálti? Não discutíamos foras-de-jogo. Interessava mais o golo ou os vários golos que o jogo tinha dado. E então, de entremeada e orgulho e beleza nas mãos, pedíamos aos que estavam dentro dos autocarros que se baixassem para vermos se de facto aquilo tinha sido um golo tão bom quanto nos pareceu. E era ainda melhor. Aumentávamos o golo ao seu expoente máximo: eram dois golos! E depois três golos! E eram golos que nunca mais acabavam, naquela lama de onde saltávamos agarrados ao autocarro a bater com os pés e com as cabeças e com os litros de vinho todos a saltarem com os adeptos que, lá dentro, festejavam com cigarros e cachecóis ao rubro a baterem nas luzinhas e nos ares-condicionados.





O golo existia dentro do estádio e propagava-se por nós e entre nós por mais umas horas: falávamos dele, moldávamos-lhe as faces até ao momento em que, por mais repetições, já ninguém sabia se o golo tinha sido do Magnusson ou se tínhamos sido nós que, num acesso de demência, acabámos em frente à baliza e finalizámos. Era assim, junto às paredes dos autocarros que diziam nomes estranhos de empresas regionais de viação: a gente espreitava o golo por entre cabeças de mães de família que procuravam recato dentro da viatura, abria-se uma cratera de esperança de que o golo viesse a ser diferente – algo que mudasse desde o apito final até àquele momento, queríamos novidade -, baixávamos o corpo, a espinha flectia-se, os joelhos flectiam-se, os pés enterravam-se nos baixios da lama, o Gabriel Alves, o Rui Tovar, o Miguel Prates, o Mário Zambujal, o Ribeiro Cristóvão, um deles, já não sei qual nem interessa, começava o resumido relato e nós ali, num silêncio sepulcral mirando as televisões de autocarros à espera de mais um golo que já tinha acontecido.



E a sensação – maravilhosa sensação de ver coisas a passarem na televisão que vimos ao vivo e a cores e a cheiros e sons e nomes e vidas – de estar quase a chegar aquele impulso supremo. O golo vinha, o golo estava quase a vir, e depois o grito, os abraços, os beijos, as entremeadas e as cervejas no ar, tudo doido com um golo em repetição, de dentro do autocarro batiam com força nos vidros, beijavam os cachecóis, levavam os fiozinhos de ouro à mão, agradeciam aos céus por uma fresta em diagonal que se abria lá dentro e cá fora a mesma coisa: gente batendo com força nos pneus e nas letras mal pintadas e mal coladas a dizer TorrExpresso ou alguma coisa parecida com esta que não se pode prometer, visto que o molho das bifanas cortou metade das tintas e colas e adereços.



O golo, aquele golo e aquele momento, que apesar de serem tantos são sempre únicos e nunca se repetem, aconteceram tantas vezes naquele relvado que víamos descendo rampas e depois escadas ou subindo escadas e rampas. O coração acalmava quando os olhos viam o relvado a esperar, sempre a esperar, a entrada dos artistas e as emoções que estavam quase a acontecer. Um golo do Benfica. Um golo do Benfica. Um golo do Benfica. Não há relvado que resista a um golo do Benfica.